“ Nos pesadelos ‘pós-coloniais’. A deriva contemporânea é um labirinto… Parece que nem Durban, nem Obama, nem as novas revoltas negras na Europa são capazes de nos fazer erguer os olhos para ver algo além dos muros com pontas de ferro … Mas jovens negros e negras recomeçam e plantam novas utopias no presente, sonhos quentes, sementes fecundas de mentes e corpos negros…que jogam pólem no futuro-flor da humanidade.”

[Salloma Solamão, Capulanas – Cia de Artes negras de SP. Engoma, dos pés à cabeça, os quintais que sou…]

Foto: Cadu Freitas/BnL

Foto: Cadu Freitas/BnL

 

A circularidade, assim como a ancestralidade, a memória e a oralidade são alguns dos inúmeros valores civilizatórios africanos que vivenciamos todos os dias. De uma forma explícita e determinada ratificamos os ensinamentos das nossas ancestrais legitimando cada vez mais a sabedoria e perspicácia ensinada  diante das armadilhas do racismo e do sexismo ao longo da nossa vida feminina negra.

Vovó Benigna me ensinou muitas coisas. Entre elas gostar de ser preta e mulher. Encarar o mundo de frente. Falar alto. Afirmar minha identidade.

Sendo negra, mulher, pobre e empregada doméstica, ela sabia que não era fácil. A vida, sempre cheia de desafios, tentava o tempo todo fazer com que Mamãe Zaira (única filha de Vovó) e nós, as netas, acreditássemos que não éramos pessoas, não podíamos ser, ter, quiçá pensar.

Vovó ensinou a gente a inexplicável capacidade de resiliência. E tinha que ser em coro. Tinha que ser entre todas as netas e netos, pois os netos e netas de D. Benigna de fato e direito eram pessoas. Negras e pessoas.

Nenhum irmão ou irmã era mais bonito ou inteligente. Éramos todos e todas netas e netos de D. Benigna.

Ela afirmava que sendo negros e negras tínhamos direito a escola, ao parque, ao dentista, a feira, a colocar coroa em Nossa Senhora na época da Coroação, a vestir de anjo, a dançar quadrilha nas festas juninas da escola, sonhar e tantas outras coisas que o racismo priva as crianças negras e acaba por expulsá-las do ambiente escolar e dos sonhos infantis de poder viver nossa diversidade com igualdade.

Vovó nos ensinou a ter direito ao Bem Viver. Ela chamava de: “Poder Viver Bem Com Direitos”. E para ela, qualquer pessoa preta também tinha que ter direito de viver bem.

Mais tarde entendi o que ela dizia. O direito de “fazer viver e deixar morrer” é uma das dimensões do poder de soberania dos Estados modernos e que esse direito de vida e de morte “só se exerce de uma forma desequilibrada, e sempre do lado da morte”. É esse poder que permite à sociedade livrar-se de seus seres indesejáveis. A essa estratégia Michel Foucault nomeou de biopoder, que permite ao Estado decidir quem deve morrer e quem deve viver. Hoje eu sei que o racismo, a homofobia, o machismo, a lebosfobia, o extermínio de nossos filhos e filhas, a desigualdade social, a exclusão e a negação, seriam, de acordo com Foucault,  elementos essenciais para se fazer essa escolha.

Um outro princípio e valor Africano presente  em vários países de África e muito vivenciado por nós, netas e netos de D. Benigna,  é retratado na expressão Ubuntu,  que estabelece  alianças e relacionamento  ético das pessoas umas com as outras. A palavra vem das línguas dos povos Banto; na África do Sul nas línguas Zulu e Xhosa. Ubuntu  acima de qualquer tradução significa “ Sou o que Sou pelo que Nós Somos”. Tudo lá em casa era de tod@s, e partilhado e dividido. O pouco pão, a cama, a tolha de banho, o velho velocípede, as parcas e raras frutas… nada era de ninguém. Tudo era de “todo mundo”. @s filh@s dos vizinhos que chegavam a qualquer hora do dia também faziam parte do “todo mundo”, por isso a operação matemática era sempre refeita para garantir igualdade e participação de tod@s em todas as coisas.

Assim como os povos africanos, os povos indígenas andinos, também partilharem de tal filosofia, denominando-a de Bem Viver.
Parafraseando Fernando Huanacuni, Aymara Boliaviano, nossos ancestrais aprenderam a diferenciar viver bem do viver melhor. Viver melhor significa ganhar à custa do outro, é acumular por acumular, é ter o poder pelo poder. Mas viver bem é devolver-nos o equilíbrio e a harmonia sagrada da vida. Tudo que vive se complementa, num ayni que é uma consciência de vida; o ayni é a consciência de que tudo está interrelacionado. A árvore não vive para si mesmo; o inseto, a abelha, a formiga, as montanhas, não vivem para si mesmos, senão em complementaridade, em reciprocidade permanente: a isso chamamos ayni.

Assim como Vovó Benigna, outras tantas avós ensinaram tantas coisas, tantos valores, tantas estratégias de luta por direitos que é impossível não coloca-las em práticas.

O Dia Internacional da Mulher comemorado, no dia 08 de março, para nós mulheres negras, significa a luta diária, permanente, histórica, urgente e necessária de assegurar políticas públicas pelo Bem Viver de combate ao racismo, ao sexismo, a lebosfobia e tantas outras formas de opressão.

Para nós, Mulheres Negras, o Bem Viver significa acesso à escola, oportunidade no mercado de trabalho, redução das taxas de mortalidade materna, fim do genocídio da nossa juventude negra, livre escolha sobre nossos corpos, fim da violência doméstica e racial, entre tantas outras reivindicações históricas e silenciadas pelo poder público.

Em 2015 seremos cerca de 150 mil negras marchando, enegrecendo a Esplanada dos Ministérios, em Brasília – Contra o Racismo e Pelo Bem Viver. Será um momento de extrema importância para a conjuntura política das Mulheres Negras no Brasil. 

Até lá, continuaremos a atuar no sentido de mobilizar, formar politicamente e fomentar o surgimento de novas organizações de negras no país, possibilitando  a estruturação articulada com o fortalecimento institucional, sustentabilidade e formação política das jovens e mulheres negras. A Rede de Mulheres Negras do Nordeste, articulada pelo ODARA é um bom exemplo desta ação. O foco da formação abrange entre outras, as dimensões de raça, gênero e orientação sexual, buscando, assim, incidir de forma concreta nas políticas públicas de combate ao racismo, sexismo, lesbofobia, promoção da igualdade, contra a violência e pelo Bem viver das mulheres negras.

Obrigada Vovó Benigna e as outras tantas Vovós, mães, mulheres. Como canta a linda, negra e poeta, Lecy Brandão: “o que eu sei é que tudo que eu sou, simplesmente é o resultado das coisas que Mamãe me ensinou”. E elas aprenderam com Vovós, que aprenderam com as Bisavós, que aprenderam…

*Por Benilda Brito