Lembrança viva da infância. 1972. Tacão do regime militar implacável. Conversas aos sussurros dentro de casa. Choro. O irmão de um parente paterno fora preso, não por estar militando numa organização clandestina. Era “desbundado”. Assim a esquerda ortodoxa e a direita taxavam os que preferiam pôr o bloco na rua de outro modo.
“Os policiais o pegaram no Relógio de São Pedro fumando maconha”. A irmã relatava o sofrimento moral do rapaz com lágrimas nos olhos.
Certa senhora presente àquele velório sui generis, angustiada, tentava consolar a amiga. “Tudo se resolve e haverá um meio de tirá-lo desse vício. Não ficará drogado a vida toda”.
Vaticinara aquela que no futuro negociaria as córneas por uma receita azul prescrevendo Rivotril.
O irmão do preso, que anos depois teve o fígado e outros órgãos comprometidos por excesso de álcool, arrotava moral pelos poros. “Hippie, maconheiro descarado, tinha que levar uma sova também!”
Maconheiro. Chincheiro. Vagabundo. Não faltavam adjetivos aos apreciadores da cannabis sativa. Monstros mal vistos pela sociedade.
Quarenta e dois anos se passaram desde aquele bizarro episódio.
Não dá para dizer que muita coisa mudou, mas placas tectônicas que sustentam certos valores começam a se mover.
Na América do Sul, o governo do ex-guerrilheiro tupamaro José Mujica aprovou Lei que regula e estatiza o mercado da erva, liberando o plantio caseiro e o uso com normas. O objetivo, sustenta Mujica, é pôr fim ao narcotráfico.
Os estados de Washington e Colorado, nos EUA, também aprovaram leis liberando a venda e o consumo. E a Casa Branca não pretende se intrometer na decisão dos outros estados do país.
Na Europa, a Holanda já se antecipara há muito criando áreas para fumar. Em Portugal já não é crime plantar e usar maconha.
No Brasil, ser pego pela polícia com uma quantidade pequena, destinada ao consumo pessoal, pode gerar três tipos de penas: advertência sobre os efeitos, prestação de serviços à comunidade e submissão a programas educativos. Todavia, tais sanções dependerão do humor do delegado, do juiz e do promotor.
Nesta semana, a ONU levará documento à reunião em Viena admitindo que os objetivos na luta mundial contra as drogas não foram cumpridos. O organismo sugere, pela primeira vez, a descriminalização do consumo.
Vai se fechando, aos poucos, o consenso de que o proibicionismo e a guerra às drogas é apenas um delírio moral que tem ceifado milhões de vidas e rendido muito dinheiro ao crime organizado e à corrupção policial e judicial.
Se a maconha faz algum mal ao organismo? Sim, não sejamos hipócritas, embora infinitamente menor que o álcool, cigarro e outras drogas lícitas. As prateleiras das farmácias estão abarrotadas para o deleite de quem quer consumir analgésicos, ansiolíticos e afins.
Na contramão, centenas de estudos também apontam benefícios do uso da maconha. Se a questão for entendida e debatida por este prisma, fica mais fácil compreender o problema, até mesmo para executar políticas públicas de saúde que auxiliem o controle do consumo e atendam, se for o caso, aos usuários.
O que não dá mais é alimentar crenças milenares de que um dia a comunidade mundial encontrará a caneleta da boa conduta e excluirá o uso de drogas para todo e sempre.
É bom acordar para realidade. Não há e nunca haverá “purificação” universal. Pura lenda.
Registros indicam que o contato do homem com a maconha e outros alucinógenos ocorre há mais de 10 mil anos. E, ao que parece, permanecerá até que perdure a humanidade.
É debate duro. A sociedade brasileira é bastante conservadora. Dificilmente os projetos de lei propostos pelos deputados federais Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Cristovam Buarque (PDT-DF), que descriminaliza e regulamenta o uso, serão aprovados nesta legislatura.
Falta lucidez e racionalidade na discussão.
Neste caso, é dever do Estado ocupar o espaço de protagonista na condução desse impasse.
Às favas com a hipocrisia religiosa, cultural e social que só favorece o crime organizado. Lamentavelmente, enquanto escrevo este artigo muitos estão morrendo em decorrência de uma miopia social estúpida. Ilegal deve ser a violência cotidiana por conta de uma legislação atrasada. E careta.