De olho no financiamento eleitoral, PMDB defende interesse das Teles no Marco Civil da Internet e se une à oposição para derrotar governo; projeto coletivo pode ficar desfigurado.
Veja a primeira parte da reportagem especial, do jornalista Felipe Seligman, para a Pública, sobre o tema
PÚBLICA | No dia 6 de novembro do ano passado, a bancada do PMDB, segunda maior da Câmara, se reuniu no Congresso Nacional para ouvir com exclusividade o que Eduardo Levy, diretor executivo do Sindicato das Empresas de Telefonia (Sinditelebrasil), tinha a falar contra o projeto do Marco Civil da Internet, que já naquela época trancava a pauta da casa. Uma didática exposição concentrava as principais críticas sobre a tão falada neutralidade da rede e defendia a desnecessidade de um projeto sobre o assunto.
Diante das informações prestadas, o deputado Fábio Trad (PMDB-MS) levantou a mão. “A pergunta que eu faço ao Levy é a seguinte: se hoje nós temos uma desigualdade, afinal de contas todos pagam em tese o mesmo por serviços diferentes, existe algum estudo que demonstre prejuízo financeiro às empresas, às Teles, por exemplo, em virtude dessa igualdade diante de serviços diferentes?”
A resposta veio em seguida. “Não é que o projeto provoque prejuízo às Teles. O que está em jogo ai é que o projeto provoca uma necessidade de investimento maior para manter o nível de serviço igualitário, que acarretará, ao fim, no aumento do custo para o usuário”, afirmou um convicto Eduardo. Não o Levy, como seria de se esperar, mas Eduardo Cunha, líder do PMDB na Câmara, e apontado como o mais ferrenho defensor dos interesses das empresas de Telefonia nessa questão.
O objetivo da palestra de Levy era municiar os deputados peemedebistas para o debate que ocorreria naquele mesmo dia, à tarde, também convocado por Cunha, com a Comissão do Marco Civil. O encontro entre a bancada e o representante das Teles, disponível no Youtube, demonstra bem o grau de confusão de interesses na bancada do Marco Civil da Internet, que se agravou com a disputa política entre PMDB e o governo Dilma durante a votação do projeto neste ano, seguidamente adiada.
O Marco Civil, como o próprio nome diz, refere-se à criação de princípios básicos, uma espécie de Constituição de direitos e deveres fundamentais a serem seguidos no mundo digital. Trata-se de uma matéria que envolve interesses complexos e difíceis de serem equacionados. Algo que, por mais técnico que pareça, terá repercussão direta na sua sua vida e na dos 100 milhões de brasileiros conectados.
As regras a serem definidas no Marco Civil terão repercussão direta na vida dos brasileiros – não apenas dos já conectados na dos que ainda irão se conectar. Também afetarão instituições tão diversas quanto as próprias empresas de Telecomunicação, como Oi, Telefônica ou Tim; os provedores de conteúdo, entre eles Google, Facebook; a sociedade civil organizada; a Polícia Federal e o Ministério Público; e até mesmo as relações internacionais do governo Dilma Rousseff.
O histórico da lei da internet, feita pela internet
O projeto que está para ser votado, e que corre o risco de ser desfigurado no Congresso, é resultado da mobilização da sociedade e de um processo democrático acompanhado de perto pela pesquisadora Juliana Nolasco, da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Ela trabalhou no Ministério da Cultura, que participou do início do processo de elaboração do Marco Civil, e atualmente, já fora do governo, finaliza uma dissertação de mestrado sobre o tema. Para nos guiar ao longo dessa reportagem, ela destacou alguns momentos-chave da discussão.
O primeiro aconteceu em 2007. Na época, o então senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) reuniu propostas em torno de um projeto de lei que previa uma série de crimes em informática. A opção do legislador era, portanto, iniciar a regulamentação da Internet por meio da criminalização de condutas.
“O Brasil tem uma tradição de regular primeiro o crime. Para se ter uma ideia, a primeira lei brasileira que tratou sobre direito autoral foi o Código Penal do Império”, diz Ronaldo Lemos, professor de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio e do Creative Commons Brasil.
Lemos, uma figura emblemática em todo esse processo, foi o primeiro no Brasil a defender a regulamentação civil, antes da penal, no universo digital. Ainda em 2007, publicou um artigo intitulado “A internet brasileira precisa de um Marco Civil”, no qual defendia que antes de criminalizar condutas, seria necessário elaborar um texto de princípios, o que nos Estados Unidos é chamado de “bill of rights”.
O projeto de Azeredo continuou na pauta nos anos seguintes. Em 2009 já havia sido aprovado por uma série de Comissões da Câmara e estava pronto para ser ser votado em plenário.
Ativistas da internet, encabeçados pelo sociólogo Sérgio Amadeu e pelo publicitário João Carlos Caribé, iniciaram uma ampla campanha contrária ao projeto, convocando reuniões e abrindo o debate na rede. O Projeto Azeredo, que defendia penas de até 4 anos de prisão por condutas genéricas, como invasão de sites (cuja interpretação poderia até mesmo penalizar alguém que copia o texto de um site e reproduz e seu blog), ganhava ali a pecha de “AI-5 digital”, em referência ao ato institucional da governo militar que, em 1968, suspendeu direitos constitucionais e endureceu de vez o regime ditatorial que havia se instalado em 1964.
A campanha chamou a atenção do governo e a tramitação foi momentaneamente paralisada na Câmara. No meio de 2009, o então chefe de gabinete adjunto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Cezar Alvarez, convidou um grupo formado por estudiosos e ativistas da rede, como Marcelo Branco, por exemplo, assim como defensores da Lei Azeredo, entre eles representantes da Polícia Federal, para conversar sobre o assunto. “Ele [Alvarez] nos disse que o projeto estava parado, mas o governo precisava de uma alternativa. Foi então que defendemos a necessidade do Marco Civil”, conta Lemos, que também participou da reunião.
Alvarez comprou a ideia e a vendeu para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pouco tempo depois, no final de junho de 2009, Lula foi a Porto Alegre participar do Fórum Internacional do Software Livre e, em discurso simbólico, defendeu que, em seu governo, seria “proibido proibir”, instando, naquele mesmo pronunciamento, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, a elaborar um anteprojeto de lei a ser enviado ao Congresso.
Genro passou a bola para a equipe do então secretário de Assuntos Legislativos, Pedro Abramovay, jovem advogado que aos 28 anos chegou a assumir interinamente o Ministério da Justiça.
A primeira decisão de Abramovay foi elaborar o texto de forma colaborativa. Ele convidou Lemos, na época ainda na FGV-Rio (Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro), que ficou responsável por montar uma plataforma digital, hospedada no culturadigital.br, possibilitando a participação de todos os atores interessados no tema.“Decidimos que o melhor caminho seria escrever a lei da internet pela internet”, conta Lemos.
E assim foi feita a lei. Um primeiro texto foi apresentado em 2010, e depois de mais 2 mil contribuições de atores tão diversos quanto Google, Polícia e ativistas de software livre, o projeto ficou pronto em 2011 para ser enviado ao Congresso. Essencialmente, o texto final reafirmava que a internet é um espaço livre, onde prevalece a liberdade de expressão, a liberdade de acesso à informação, garantindo a privacidade dos seus usuários, cujos dados só podem ser expostos por meio de autorização Judicial.
“É uma história curiosa, porque quem participou do debate está junto nesse processo, desde a Polícia Federal até os provedores de internet. Essa aliança que apoia o texto do Marco Civil é improvável e foi forjada graças às conversas”, lembra Abramovay. ”No começo, as posições do Google, Uol e do pessoal de software livre eram muito diferentes. Mas conseguiram se juntar, porque viram que tinham vários interesses em comum”.