Que ocorrerá quando EUA perderem jurisdição sobre poderoso Icann. Como evitar balcanização da rede. Por que mudanças não impedem espionagem militar norte-americana…
A internet tem dono? Oficialmente, não. Sobretudo por seu aspecto descentralizado, a internet é constituída por muitas redes independentes interconectadas voluntariamente, o que dá a ela o caráter de “rede de redes”. Nesse emaranhado, cada uma é dona de si mesma e, ao integrar-se, se dispõe a contribuir para que o tráfego flua conforme os protocolos de roteamento estabelecidos previamente pelos organismos que administram a rede (ver, abaixo, “Quem dirige a internet”). Funciona como cidades que se interligam numa malha viária, sob um regime de leis de trânsito.
Demi Getschko, membro de “notório saber” do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), talvez a figura brasileira que mais entende do assunto, responsável pela primeira conexão em território nacional, costuma dizer em suas entrevistas que “ninguém controla a internet”. No entanto, os EUA são geralmente apontados como os mandachuvas da rede global de computadores. Isso se explica porque Washington exerce o controle de dois recursos importantíssimos do sistema: o dos “servidores-raiz” e o da Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (Icann, Corporação para Atribuição de Nomes e Números na Internet), uma entidade sem fins lucrativos com sede em Marina del Rey, no estado americano da Califórnia, subordinada ao Departamento de Comércio americano (ver “O que faz a Icann?”).
Pelo fato de a sede da Icann situar-se em território americano, qualquer conflito jurídico entre países envolvendo domínios de internet seria resolvido conforme a legislação da Califórnia. E o desejo do Brasil, como o da maioria dos países, incluindo aqueles integrantes da União Europeia (UE), é de que a Icann – dada sua importância – tenha um caráter mais independente e fique sediada em território “neutro”. O debate em torno dessa questão voltou recentemente à baila, segundo Fadi Chehadé, presidente da Icann, por conta das revelações de Edward Snowden, no ano passado, sobre a espionagem realizada pela Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA, na sigla em inglês). “As revelações trouxeram a discussão sobre governança para o centro da agenda geopolítica. Precisamos ser intelectualmente honestos com isso”, disse Chehadé em entrevista ao diário Folha de S.Paulo.
Vários países desde então – entre os quais Brasil e Alemanha – passaram a pressionar os americanos por mudanças, o que inclui a gestão do Icann. Angela Merkel, primeira-ministra alemã, sugeriu, por exemplo, criar uma internet exclusivamente europeia. E a presidente Dilma Rousseff fez um discurso crítico na abertura da 68ªAssembleia Geral das Nações Unidas, realizada no ano passado.
Mas não é de agora que os países pedem mudanças em relação ao controle da internet pelos EUA. Já em 2003, durante a Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, realizada em Genebra, a delegação brasileira defendeu que a internet não podia ser governada unilateralmente, posição que teve apoio da Argentina, dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e da UE.
Foi por solicitação do próprio Chehadé, que admite que o controle da internet é excessivamente “concentrado nos EUA” e no “mundo ocidental”, que o Brasil recebeu a Conferência Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Rede (NetMundial), realizada em abril passado. Um mês antes, no entanto, os americanos surpreenderam a todos. “Vendo que nos últimos meses houve um problema em misturar administração de nome e domínio com espionagem, segurança e privacidade, os EUA sinalizaram o desejo de abrir mão do controle da Icann”, disse a Retrato do Brasil Hartmut Glaser, diretor do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), entidade civil sem fins lucrativos que desde dezembro de 2005 implementa as decisões e projetos do CGI.br. Cabe explicação: a governança dos recursos críticos (nomes de domínio e números de IP) e a governança relacionada a temas que geralmente são alvo de políticas públicas, como a privacidade, o acesso à infraestrutura e a conteúdos, a segurança, não se misturam, necessariamente. Nesse sentido, a gestão da Icann não tem a ver com a espionagem realizada pela NSA.
O Departamento Nacional de Administração de Telecomunicações e Informação dos EUA (NTIA, na sigla em inglês), vinculado ao Departamento de Comércio, alertou, porém, que só passará o bastão se for seguida uma série de regras preestabelecidas. Excluiu, por exemplo, que seja um novo governo a controlar a Icann ou mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da União Internacional de Telecomunicações (UIT), possibilidade apoiada por países como China e Rússia. A ideia é que a comunidade global de internet faça essa gestão. “A única solução é o modelo multissetorial”, disse Chehadé, que assegura que nenhuma parte, como os governos, por exemplo, tenha sozinha o controle da governança da rede. Esse modelo da participação equânime na tomada de decisões se assemelharia ao funcionamento do CGI.br, que tem esse caráter multistakeholder, ou de múltiplas partes interessadas, que permite a participação e a consideração de todos os atores que importam em um sistema – quer representem governos, setores da iniciativa privada ou da sociedade civil, incluindo setores técnicos e acadêmicos –, em bases igualitárias e por meio de um processo inclusivo.
Foi exatamente essa a visão que prevaleceu durante o NETMundial. As repercussões da decisão americana ainda não estão claras, uma vez que serão os EUA que estabelecerão as condições e as pautas dessa transição de poder nos próximos meses. “Como você faz um conjunto de regras legítimo que é verdadeiramente transnacional e, ao mesmo tempo, garante que ele seja legítimo nacionalmente?”, ponderou Chehadé.
Esse debate será aprofundado em setembro, na Turquia, durante o Fórum de Governança da Internet (IGF, na sigla em inglês), órgão da ONU que cuida do assunto. Entre os cinco pontos principais do documento apresentado no NetMundial, ficou estabelecido que a rede deve ser um espaço unificado e não fragmentado, com padrões comuns de comunicação e livre fluxo de informações. Na contramão dessa visão estão Rússia, Índia e Cuba, que defendem que a internet seja controlada pelos governos. A Rússia, inclusive, negou-se a assinar o documento. Cuba e Índia também discordaram dele abertamente. A China, que já declarou ser a favor do controle governamental em outros fóruns, não enviou representante ao evento.
O documento também alertou sobre o respeito aos direitos humanos na internet, ao afirmar que o que vale no mundo físico deve valer no virtual. Entre eles estão direito à privacidade e à livre associação com outras pessoas, liberdade de expressão, acesso às informações e desenvolvimento socioeconômico. O fortalecimento do IGF também foi lembrado, assim como a internacionalização da Icann e sua abertura à participação de mais interessados. A Icann disse em nota que pretende fazer a transição antes da renovação do contrato com os americanos, que se encerra em setembro do ano que vem.
Segundo Glaser, não existe registro de que o Departamento de Comércio tenha interferido nas funções da Icann. Por isso ele afirma que os debates que vigoram são de “ordem totalmente política, e não técnica”. “O que nós queremos é tirar essa supervisão de um único governo, que é quem, no fim, carimba as decisões finais dessa gestão.”
Para compreender a origem do contrato dos EUA com a Icann é preciso voltar no tempo. Por razões históricas, o governo americano tem um papel fundamental na criação da internet, pois foi quem fundou sua estrutura inicial, na década de 1960. Somente no começo dos anos 1990 a rede tomou a forma que tem atualmente, ou seja, aberta e descentralizada. Antes, era um projeto com fins de defesa e que aos poucos se tornou uma ferramenta para uso acadêmico – ou seja, a “pré-internet” era uma forma de comunicação entre diferentes universidades e centros de pesquisa por meio de computadores.
A base dessa rede era uma infraestrutura física gerida pela Fundação Nacional de Ciências americana. O processo de privatização dessa rede física, inicialmente para quatro empresas – Sprint, MFS, Ameritech e Pacific Bell – se deu nos anos 1990, período em que a “comunidade técnica” associada a algumas grandes empresas criou um movimento com o objetivo de estabelecer uma entidade responsável pelo sistema de endereçamento da rede. Nesse ponto é que nasceu o segundo braço da “privatização”, culminando com a criação da Icann em 1998, durante o governo do presidente Bill Clinton. Antes da Icann, quem cumpria esse papel era a Internet Assignet Numbers Authority (Iana, Autoridade para a Atribuição de Números na Internet), a qual, desde 1986, é o braço dessa operação mantida sob a tutela do Departamento de Comércio. Por meio de um contrato renovável a cada ano, a Iana passou à administração da Icann, papel que esta exerce há 16 anos. Glaser explica que a mudança sinalizada em março pelos EUA se refere, principalmente, às funções da Iana, que é, segundo ele, “o coração da internet”, cuja operação técnica, garantiu a Icann em nota, não deve ser alterada.
Atualmente, boa parte dos mais de 2,8 bilhões de usuários de internet no mundo vive fora das fronteiras dos EUA e uma parte crescente do tráfego já não passa pelos cabos americanos. Mas não se pode subestimar a força dos EUA mesmo num momento de grande desconfiança. Dan Schiller, professor de comunicação na Universidade de Illinois em Urbana-Champaign e autor de How to think about information, diz em artigo que os padrões técnicos da internet também foram estabelecidos por duas outras agências dos EUA, a Internet Engineering Task Force (Ietf) e a Internet Architecture Board (IAB), elas próprias integradas a outra organização sem fins lucrativos, a Internet Society. “Em vista de sua composição e de seu financiamento, não é surpreendente que essas organizações deem mais atenção aos interesses dos EUA do que às solicitações dos usuários”, diz Schiller. Na opinião dele, a atual transição para a “computação em nuvem” (cloud computing), cujos principais atores são americanos, deve aumentar ainda mais a dependência da rede em relação aos EUA.
Seja no plano militar ou comercial, esse desequilíbrio estrutural do controle da internet dá vantagem aos EUA, deixando outros países com pouca margem para regular, apertar ou afrouxar o sistema de acordo com seus próprios interesses. Nesse sentido, a revista britânica The Economist pode ter razão. Ao falar dos debates sobre as mudanças da governança da rede, a publicação citou a obra Il Gattopardo, do escritor italiano Giuseppe Tomaso di Lampedusa: “Se queremos que tudo fique como está, é preciso mudar tudo”.
Quem dirige a internet
Além da Icann, a gestão da internet é conduzida por uma rede de grupos independentes e interconectados. Abaixo, um resumo de quem faz o que nesse sistema.
Iana (InternetAssignedNumbersAuthority) – Vinculada à Icann, é a responsável técnica pela distribuição de endereços de IP e pela gestão do protocolo DNS.
Iab (Internet Architecture Board) – É uma junta de arquitetura da rede que supervisiona os trabalhos da Ietf e Irtf.
Ietf (Internet Engineering Task Force) – Grupo de trabalho de engenharia da internet. Desenvolve os padrões de comunicação da rede, como o TCP/IP, e garante que continuará evoluindo conforme a necessidade.
Irtf (Internet Research Task Force) – Grupo de trabalho de engenharia da internet. Trata do estudo e aprimoramento dos protocolos da internet, aplicações, arquitetura e tecnologia.
Igf (InternetGovernance Forum) – O Fórum de Governança da Internet é formado por representantes de múltiplos interesses, os quais debatem os problemas relacionados à gestão da rede. Foi criado pela ONU em 2006, após esse tema ser sugerido na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação em 2003, em Genebra (Suíça), e em 2005, em Túnis (Tunísia).
Gac (Governmental Advisory Committee) – Comitê governamental que se reúne em paralelo a todas as reuniões da Icann (três vezes porano ) e tem participação de representantes de cerca de 50 países.
Isoc (Internet Society) – Sua missão é promover o desenvolvimento aberto, a evolução e o uso da internet para o benefício de todos os povos do mundo.
W3C (World Wide Web Consortium) – Tem por objetivo criar padrões de internet que permitam uma plataforma web aberta. Por exemplo, para se concentrar em problemas de acessibilidade, internacionalização e soluções web móveis.
RIR (Regional Internet Registry) – Organização que supervisiona a atribuição e o registro dos recursos de números internet em uma determinada região do mundo. Atualmente, existem cinco RIRs em operação: ARIN: América do Norte e partes do Caribe;
RIPE NCC: Europa, Oriente Médio e Ásia Central; APNIC: Ásia e Pacífico; LACNIC: América Latina e partes do Caribe; e AfriNIC: África.
* Thiago Domenici, no Retrato do Brasil/Outras Palavras