És Ubuntu

Começo o fim

Ancestralidade começo

Identidade meio

Quando na outra me reconheço

Sou o infinito

Transmigração de almas

Ponto de continuidade

Circularidade

Fim o começo

para Beatriz Nascimento em memória

 

Por um bem viver é isso que nós, mulheres negras, lutamos diariamente. Fazemos frente a varias lutas por garantia de direitos e acesso a oportunidades equitativas para nós e para toda comunidade negra.  Bem viver para nós significa a extensão do viver bem de toda a comunidade negra e é estruturada pela ancestralidade, identidade e circularidade.

mulherMas, o Bem Viver apesar de ser uma experiência vivenciada por nós, ganhou visibilidade e se tornou uma luta dos Povos Indígenas da America Latina que redescobriu um conceito milenar “em primeiro lugar ‘viver bem entre nós’. Trata-se de uma convivência comunitária intercultural e sem assimetrias de poder (…). É um modo de viver sendo e sentindo-se parte da comunidade, com sua proteção e em harmonia com a natureza (…) diferenciando-se do ‘viver melhor’ ocidental, que é individualista e que se faz geralmente a expensas dos outros e, além disso, em contraponto à natureza”**, escreve Isabel Rauber¹.

No dialogo atemporal com Beatriz Nascimento² entendi, mais nitidamente o que poderia ser o bem viver para nós, quando ela me apresenta que “É preciso imagem para recuperar a identidade, tem que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade…”, ou seja, Beatriz assim como os Povos Indígenas da América Latina nos apresenta, é que somos seres que nos completamos a partir de outros seres. E o movimento de mulheres negras nos ensina é que nossa luta é coletiva, pela comunidade, pelo bem viver da população negra.

Seguindo um pouco mais adiante do Dossiê Bem-Viver, apresento um ponto que dialoga diretamente com a nossa construção sobre priorizar a vida, ou seja, “Viver Bem é buscar a vivência em comunidade, onde todos os integrantes se preocupam com todos. O mais importante não é o ser humano (como afirma o socialismo) nem o dinheiro (como postula o capitalismo), mas a vida. Pretende-se buscar uma vida mais simples. Que seja o caminho da harmonia com a natureza e a vida, com o objetivo de salvar o planeta e dar a prioridade à humanidade”**.

donaE Dona Maria do Paraguaçu³ também vai me ajudar a entender um pouco mais isso, quando resgato da memória e relembro a sua fala em um seminário em que eu tive a oportunidade de conhecer, escutar e aprender com ela sobre a preocupação com o ambiente e os empreendimentos governamentais e privados que estavam seguindo na contramão da vida das pessoas do Quilombo São Francisco de Paraguaçu, quando ela dizia que cuidar do mar e dos peixes era importante para as pessoas, pois lhes garantiam a vida e a manutenção do ambiente. E nesta direção o Dossiê apresenta o ponto da complementaridade, significa que “Viver Bem é priorizar a complementaridade, que postula que todos os seres que vivem no planeta se complementam uns com os outros”**.

Ao trazer neste dialogo mulheres negras, quilombolas e povos indígenas, reflito a partir da ancestralidade que sempre nos seguiu e nos deu/dar horizonte, é preciso da identidade para assegura a historia e a nossa memória, por isso resgato Beatriz e Dona Maria no dialogo com os Povos indígenas que redescobre um Bem Viver ancestral e que dá sentido a nossa existência no mundo. “Viver Bem significa valorizar a nossa história, a nossa música, a nossa vestimenta, a nossa cultura, o nosso idioma, os nossos recursos naturais, e depois de valorizar decidimos recuperar tudo o que é nosso, voltar a ser o que éramos”**.

Sim, nos marchamos pelo BEM VIVER, nós marchamos pelo direito de CUIDAR, CURA E CUTUAR a nossa ancestralidade, sim nos marchamos pelo DIREITO de estar no MUNDO sem violência e sem RACISMO. Nós marchamos pela VIDA e não pela sobrevivência. Vida para comunidade negra, Vida para Nós!

*Mulher Negra, Ativista, do Candomblé. Procurando um lugar no Mundo para o Bem Viver. Odara Instituto da Mulher Negra, Pesquisadora, Enfermeira, Doutoranda em Saúde Pública.

¹Pensadora latino-americana, estudiosa dos processos de construção do poder popular em indo-afro-latinoamérica.

²Retirante, Nordestina, Mulher, Intelectual Ativista Negra, Beatriz Nascimento nasceu em Sergipe, em 1942, e aos sete anos migrou com a família para o Rio de Janeiro, onde se formou em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela faz parte de uma história de mulheres que combateram frontalmente o sexismo, o machismo e as violências domésticas. Pagou com a própria vida a solidariedade de abrigar, em sua casa, uma amiga, vítima desse tipo de violência. Era 28 de janeiro de 1995.

³Dona Maria José das Dores de Jesus Correia. Mulher, negra, e uma das grandes personalidades na luta pelo direito ao ambiente e pela conquista do território quilombola de São Francisco de Paraguaçu do Boqueirão, em Cachoeira (BA), Dona Maria tornou-se também um dos símbolos dos movimentos de quilombolas da Baía do Iguape e de Pescadores da Bahia. Morreu no enfrentamento pelo direito ao Território do Quilombo.

*Por Emanuelle Goes – Enfermeira. Mestra em Enfermagem. Doutoranda em Saúde Pública. Coordenadora de Saúde do Odara Instituto da Mulher Negra

Fontes: **Dossiê Bem-Viver, Iser Assessoria, 2011 | Anais I Seminário Justiça Ambiental Pelas Águas: Águas não têm Cor, 2008

Foto (capa): Andrê Frutuôso/BnL