A linguagem corporal tradicionalmente faz parte da criação e da produção material e imaterial na África. Há séculos, os africanos utilizam o corpo como veículo de conexão entre o mundo visível e invisível, sendo que grande parte da produção plástica africana se constituiu historicamente como a escolha primeira de manifestação cultural.

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Quando falamos de uma sociedade baseada na tradição oral, seus corpos servem como portadores de memória, da historia e da herança de seus antepassados, contendo signos a serem decifrados e decodificados, expressos como “tradição viva”, como já dizia o grande sociólogo e historiador maliano Hampaté Bá.

O corpo negro não é um corpo único, individual, mas sim um corpo participativo, humanitário. O corpo africano que se conecta com outra dimensão. E nessa relação que vai além de um único individuo no espaço, se estabelece uma identidade coletiva, visto como um aspecto importante dentro da cultura africana, onde se é permitido compreender uma diversidade de gestos, ritmos, cores e formas tradicionais de expressões culturais através das atividades performáticas como a música, a dança, a pintura corporal, escarificações e até em suas esculturas e máscaras, que se apresentam dentro de cada povo, possuindo características especificas próprias.

Foto: Gianfranco Gori

Foto: Gianfranco Gori

Essa memória corporal se manifesta nas performances ritualísticas e cerimoniais, cada qual com seu significado, mas que buscam a conexão entre os mundos interior/exterior, real/espiritual. Elas são a expressão de organização social quediferencia e define o papel dos indivíduos dentro da sociedade.

Esses corpos negros que, durante o período da diáspora africana, ressignificaram suas tradições levando consigo escritas performáticas, e sendo utilizados como ferramenta e linguagem, tornam-se receptáculo simbólico e expressivo transcendente neste deslocamento, habitando diferentes geografias no chamado “Mundo Novo”. Mesmo longe de suas terras, os africanos carregaram em seus corpos a memória de suas danças e rituais performáticos no objetivo de manter sua identidade cultural.

Cena do filme "Vénus Noire", baseado na vida de Sara Baartman.

Cena do filme “Vénus Noire”, baseado na vida de Sara Baartman.

Assim, o corpo negro, exótico e primitivo, era cultivado, pelos europeus, como uma fantasia de serem hipersexuados, ressaltando suas qualidades “naturais”. A exemplo disso temos o caso de Sarah Baartman, conhecida também como Venus de Hotentote, que foi exposta (e explorada) em freak shows (show de horrores) na Inglaterra devido às proporções de seu corpo, com formas mais “avantajadas” diferentes dos estereótipos europeus, e que igualmente serviu como objeto de estudo. Uma imagem historicamente fetichizada e sexualizada.

Vimos essa tradição de mulher como “guardiã e veículo de identidade africana” no intuito de manter seu status e sua sobrevivência dentro de uma sociedade patriarcal, e diante de suas “obrigações” como mãe e mulher. Ser mulher em África era se posicionar diante das condições limitadas e castradas, e mesmo que de forma mais silenciosa. Esse “silêncio” se dá por, ao mesmo tempo em que as manifestações feministas eclodiam pelo mundo, muitos dos países no continente africano encontravam-se num período de lutas pela independência.

Nas décadas posteriores, é possível ver o corpo como o próprio discurso da mulher através de organizações ativistas, escritoras femininas e muitas artistas pertencentes à chamada 3ª Diáspora. Ao saírem e retornarem aos seus países, voltam com um olhar diferente quanto a luta por essa igualdade de direitos dentro da sociedade africana, uma luta que pode ser pequena diante das manifestações ocidentais, mas que tem ganhado espaço, em especial, na esfera artística.

Na arte africana contemporânea, muitas artistas mulheres usaram seus corpos como meio de protesto, como veículo de denuncia, abordando questões de gênero (sempre vinculado ao sexo, e principalmente à violência sexual), questões de identidade, de território e de raça, provando que elas são possuidoras desses corpos que se tornou local de múltiplos discursos no intuito de esculpir a historia, memória, identidade e cultura, guardando em si as dores e cicatrizes.

A arte de Ingrid Mwangi

A arte de Ingrid Mwangi

Dentro do panorama artístico contemporâneo, podemos citar duas artistas se destacam pela importância de seus trabalhos a partir de uma abordagem conceitual em que o próprio corpo é utilizado como local onde a arte atribui seus significados, assim como seus questionamentos. São elas Tracey Rose, da África do Sul e Ingrid Mwangi, do Quênia.

As temáticas mais comuns vistas em suas obras tratam da questão do corpo, feminino e negro, a partir da desconstrução de mitos, criticando sua história baseada na tensão e contradição da construção dos seus seres, de pertencer à dois países distintos (um africano e outro europeu), e também sua luta contra rótulo pré-concebidos pela sociedade atual, ora provocando ora chocando o espectador. O uso do corpo da própria artista faz com que o corpo da mulher africana e sua condição dentro da sociedade sejam analisados e que se possa refletir sobre as diferenças culturais, étnicas e de sexo nos dias atuais.

Instalação de Tracey Rose

Instalação de Tracey Rose.

As artistas da corporeidade se utilizam da arte para despertarem consciências, alterando seus corpos para projetar o papel da mulher, a consciência do individuo e sua função dentro da sociedade, fazendo com que a arte seja mais um espaço de tensão que de solução. Elas mostram que seus corpos guardam memórias, marcas e historias, são receptáculos de gestos codificados, mas que são ressignificados, servindo como suporte de seus trabalhos, sendo projetados como tela onde a arte se manifesta, desafiando e questionando o seu publico a partilhar de diferentes visões, a visão do “outro”.

Por Débora Ferreira/Afreaka