Quando a cobra muda de pele, deixa no rastro uma escultura transparente e perturbadora. Nos hexágonos de escamas, no enrolar sem movimento de sua causa, reside a lembrança, o fantasma do qual não se discute a existência.
A artista, arquiteta e escritora nigeriana Peju Alatise tem esse mesmo dom; mas ao invés de usar o próprio corpo como invólucro para criar, ela resgata a onisciente e diversa forma da mulher africana. Na sua descrição como artista, diz considerar-se uma alien. A etimologia da palavra alienígena vem da palavra em latim Alienus, que significa o estranho, o que vem de fora, com o sufixo –gena, que significa gerar. A palavra, muito apropriada, aplica-se a habilidade da artista de gerar figuras extracorpóreas e simbólicas.
O material de sua atenção é o ankara, tecido nigeriano usado comumente pelas mulheres de seu país e que ganhou status devido a sua inserção no mundo da moda. Ela calcifica o tecido, extrai sua maleabilidade e o torna matéria-prima de esculturas pouco ortodoxas. São representações fantasmagóricas, ainda sim coloridas, de corpos de mulheres ausentes, mas que deixaram sua alma e seu estado momentâneo preencherem a forma da estátua.
E quem é essa mulher nigeriana, contemporânea que Peju Alatise tanto representa? É a mulher que ela enxerga claramente e com quem ela pretende dialogar. Nunca é suficiente falar da mulher, principalmente das mulheres do continente africano, cercadas de tantos achismos. Da mulher debaixo dessa roupa, que embora invisível, tem uma pesada aura, que dá forma e curvas aos tecidos, e se faz presente. Da mulher que Peju conhece por ser.
A mulher Iorubá ocupa um lugar de destaque na mitologia de fábrica que Peju cria; é uma mulher regente, que tem um lugar nobre e de destaque na cultura nigeriana. No panteão das deusas Iorubás, nomes como Iansã e Nanã ecoam corpulentos e encontram a mesma força nas esculturas monumentais, cheias de misticismo e realeza.
Mas é também a mulher completamente segura de sua feminilidade e força contemporânea, e que se esparrama em pinturas muito seguras de sua sexualidade e de sua expressão. As pinturas de Peju Alatise mostram mulheres com orgulho da cor de seus lenços, da vivacidade de suas roupas, e da beleza de seus relacionamentos, como no quadro Just One Night, onde ela encontra-se com um caso e belamente o domina, a figura em destaque, um homem quieto e submisso.
Os trabalhos da artista não deixam de serem políticos. Para falar sobre o sequestro de 234 garotas em Chiboki, na Nigéria, ela desenvolveu a obra Missing. É um painel gigantesco de retratos perdidos, onde tecidos de várias etnias criam sombras das crianças ausentes, um lembrete doloroso dos poucos esforços feitos para retorná-las. A obra foi mostrada na exposição 1:54 Contemporary African Art Fair, em Londres.
A arte contemporânea e ancestral de Peju Alatise retrata a mulher nigeriana como a epifania do continente, movida a desejo, violência, supressão e beleza. Suas figuras primam pela cor e pela forma, mas induzem o segundo olhar, muito mais atento, pelas narrativas em tecido que são a própria indumentária da história feminina nigeriana.
*Por Cecília Garcia/Afreaka