Antes aberta, democrática e descentralizada, rede está ameaçada por novos monopólios. Facebook manipula fluxo de informações e experimenta influir no estado emocional das populações. Há saída?
Todos os dias, milhões de pessoas ao redor do mundo repetem, ao acordar, o mesmo gesto: desligam o despertador do celular, ligam o wi-fi de casa, acessam as redes sociais e conferem as notícias recentes, escolhidas – literalmente – a dedo por aqueles que resolvemos “seguir”: amigos, amigos da rede, personalidades, jornalistas, formadores de opinião, colunistas, piadistas. Se o ritual não é exatamente esse, não foge muito de um roteiro comum. O café da manhã com as notícias do jornal, selecionadas no dia anterior pelo editor-chefe da renomada publicação e que congregava o que era “preciso saber” sobre o que aconteceu no mundo, vai sendo substituído. A seleção, por um lado, é mais distribuída (democrática?) e bebe das fontes mais diversas, confiáveis ou não. Por outro, não obedece a uma ordenação visível, equilibrada ou, aparentemente, lógica. É feita de acordo com o leitor, de acordo com sua ficha no sistema ou com algo derivado disso, relacionado ao perfil, gostos ou interesses das pessoas ou instituições a que está conectado como amigo, seguidor ou qualquer que seja a palavra que a rede social escolhe para designar a ligação entre perfis.
Essa, porém, é somente a versão mais simples da situação, do novo cenário que marca o nosso consumo de notícias, informação e cultura, a relação mediada que estabelecemos com o mundo, com a realidade, via meios de comunicação. Nessa relação, o jornalismo está incluído, mas é apenas uma parte do conjunto de produções informacionais que nos é entregue diariamente pelo mesmo canal, ou por um conjunto de canais/redes sociais a partir dos quais somos indicados a que vídeos ver, que música ouvir, que notícias e opiniões consumir. Como uma televisão de programação fragmentada, onde a fronteira entre ficção e realidade é borrada freneticamente.
As questões mais visíveis que se colocam aí – falaremos também de outras, subterrâneas – dizem respeito a como se tornou emergente a seleção do que nos é apresentado. Por emergente entende-se algo que não obedece, a priori, um comando total centralizado, um indivíduo ou um conjunto determinado de indivíduos que escolhe soberanamente o que vai estar na capa e nas folhas internas do jornal. A escolha passa a se dar “de baixo para cima”, derivada de uma interação, que varia de acordo com cada usuário, entre os diversos pontos da rede. O “jornal” que leio certamente será diferente do jornal que outros leem. Talvez seja parecido com o de outros palmeirenses, da região de Campinas, interessados em tecnologia e sociedade. Ainda assim, não idêntico.
A própria ideia de jornal parece cada vez mais como algo do passado. Os veículos, sejam os jornais e revistas físicos que comprávamos na banca, sejam os grandes portais dos primeiros anos da internet, se estilhaçam. Os recebemos aos pedaços, uma matéria, uma coluna, uma charge. Continuam lá, como estrutura, ainda podemos navegar por eles. No caso dos portais, foram tornados imensos, na busca desesperada por cliques, em que tanto faz 100 cliques em 10 matérias ou 10 cliques em 100 matérias. Mas consumimos os veículos despedaçados, com o nome do jornal ou do site mais funcionando como uma referência de confiabilidade e inclinação político-editorial do que qualquer outra coisa. Uma marca, a se confiar muito, pouco ou nada.
Veículos de comunicação do mundo todo, e de todos os tamanhos, hoje dependem das redes sociais para terem seus conteúdos acessados pelo grande público. Quem está fora delas, ou não as alimenta com verbas publicitárias dos mais variados tamanhos, dificilmente alcança uma audiência relevante. Movimentos sociais, que nos últimos anos apostaram quase todas as suas fichas na mobilização via redes sociais mais famosas – afinal, todo mundo está lá – hoje estão praticamente igualados a qualquer empreendimento comercial. O Facebook, por exemplo, tem uma política ativa de eliminação de perfis que não sejam de pessoas físicas. O objetivo é fazer a separação em dois tipos de usuários/postadores de coisas: as pessoas físicas, cuja relação é dada com outras pessoas que veem seus posts mutuamente; e as pessoas jurídicas (vale qualquer uma delas, empresas, movimentos, artistas, intelectuais), que pagam para terem seu conteúdo distribuído maciçamente – quanto mais dinheiro, mais distribuição – ou ficam restritos à comunicação com uma meia dúzia de assinantes, apenas uma fração das pessoas que manifestaram ativamente quererem acompanhar os conteúdos daquela fonte.
No entanto, o mais relevante, e politicamente mais importante, é o que não sabemos sobre o modo como se dá essa distribuição de conteúdos. Os critérios subterrâneos, como dito anteriormente. Continuemos a usar o Facebook como exemplo, embora isso valha para qualquer sistema de recebimento de conteúdo via feed (linha do tempo, no caso do Facebook) governado por algoritmos. A interação entre as pessoas é intermediada por uma fórmula fechada (secreta) que estabelece critérios sobre de que “amigos” receberemos conteúdos, de quais tipos e com que frequência. Isso significa que o usuário não estabelece uma relação direta com quem segue, que não há garantias de que o que posta em seu perfil será entregue a todos os seus seguidores. Isso dependerá de razões que não conhecemos, que a princípio se relacionam com as micro-redes estabelecidas (os subconjuntos de amigos que conversam entre si), mas que são bem mais complexas do que isso e mudam ao sabor dos interesses do dono da estrutura.
A manipulação invisível
Em meados do ano passado, usuários e instituições que se preocupam com o gerenciamento da internet foram surpreendidos com a notícia de que o Facebook alterou o feed de aproximadamente 700 mil usuários para se estudar o que se chama de “contágio emocional”. Lê-se no artigo publicado sobre o estudo: “Estados emocionais podem ser transferidos a outros via contágio emocional, levando as pessoas a experimentarem as mesmas emoções sem sabê-lo. O contágio emocional é um fenômeno bem estabelecido em experimentos de laboratório, com as pessoas transferindo emoções positivas e negativas umas às outras”. O experimento ocorreu durante uma semana, em 2012, comprovando a tese sobre o contágio. Realizado pelas Universidades de Cornell e da Califórnia, nos Estados Unidos, a manipulação dos feedsdesses usuários contou, como não poderia deixar de ser, com o apoio do Facebook, interessado nos resultados. Mais, ele não teria ocorrido a pedido dos pesquisadores, mas após o Facebook realizar a manipulação. Os cientistas apenas trabalharam com os dados fornecidos pela empresa. As informações são de matéria da The Atlantic, uma das primeiras a divulgar o estudo.
Embora tenha sido criticado por sua falta de ética, o estudo não fez nada ilegal, já que os termos de uso aceitos pelos usuários do Facebook permitem esse tipo de manipulação.
Além de questões óbvias envolvendo a manipulação dos usuários de redes sociais para esse tipo de experimentação, o caso traz preocupações políticas bastante claras. Segundo Susan Fiske (editora da revista que publicou o artigo, o Facebook manipula ofeed de notícias de seus usuários o tempo todo. Ela teria sido informada disso pelos autores do estudo, após questioná-los sobre a ética do experimento. Isso significa que esse tipo de manipulação não é eventual e provavelmente continua sendo feita. O sentimento de humor estragado, após aquela entrada matinal no Facebook, pode não ser um acaso, uma ilusão emocional ou reflexo de que é preciso refazer sua lista de amigos. Pode estar ligado ou a algum teste, como no passado, ou a algum objetivo consciente, ainda que não público.
Para além do caso relatado, podemos imaginar um tipo de manipulação emocional mais focalizada, com impactos possivelmente maiores e consequências práticas complicadas. Os usuários das redes sociais estão ali para interagir e obter informações, seja dos amigos ou do mundo. O que capturam a partir dali, as informações que obtêm, influenciam inegavelmente em suas ações no dia a dia. O factual ainda pode ser refutado ou checado. As emoções, não. De modo diverso, elas também impactam as ações concretas, porém são menos verificáveis. Por mais que isso pareça um cenário de ficção científica é preciso pensar: e se for possível alterar o clima de confiança de uma região inteira?; que impactos políticos e econômicos isso teria?
Dos mecanismos de busca aos feeds obscuros
A questão é que, nos últimos anos, o perfil de uso da web mudou. Passamos de um modelo em que tínhamos os motores de busca como centrais para outro em que somos governados/administrados pelos feeds que recebemos. Nossa atenção é constantemente chamada, procuramos muito menos pelos conteúdos.
O impacto disso seria muito menor e muito mais relativo se esses algoritmos fossem públicos e mais administráveis por quem os usa. Mas, muito pelo contrário, são secretos, têm propriedade intelectual e caminhamos para uma internet muito mais centralizada, comandada por poucas empresas de tecnologia, ainda que espalhada por diversos servidores ao redor do globo, que agregam todos os serviços que usamos: redes sociais, e-mail, plataformas de publicação de textos e vídeos.
Desde meados da década de 1950, após o grande trauma da Segunda Guerra Mundial, confiamos na comunicação como meio para a paz e estabilidade. Nossa utopia orientadora, de raiz iluminista, nascida no meio do século passado, mas vigorosa no século XXI, diz que é possível resolver quase todas as nossas diferenças pela via da comunicação, pequenas ou grandes. Guerras seriam evitadas se os povos tivessem maior entendimento mútuo. Conflitos de classes poderiam ser resolvidos pela negociação e pelo entendimento. A comunicação científica poderia melhorar as relações entre ciência e sociedade, pavimentando um futuro de progresso científico para todos.
A internet, surgida pelas mãos e ideias de pesquisadores que foram fundamentais na construção dessa utopia, encaixou-se como uma luva. Para a luta pela democratização da comunicação ela apareceu como fórmula mágica, como saída não conflitiva para a concentração dos meios. Não seria mais preciso brigar por uma divisão justa do espectro eletromagnético (aquele em que se distribui desde os canais de televisão, de rádio, aos sinais de celular): a internet multiplicaria exponencialmente os canais; cada pessoa, grupo ou coletivo poderia ser um canal. Mas pouca gente se atentou que esses cabos, domínios, IPs, servidores, têm dono, são privados. E quem é dono manda. Com as redes sociais esse cenário parece ter se agravado, as pessoas estão concentradas em “jardins murados”, em ambientes restritos da web que se parecem com condomínios privados. Por um lado, aqueles que não têm voz nos canais tradicionais motivam-se a disputar espaço e a falarem para muita gente ali reunida. Por outro, vivem as limitações materiais e de software de um espaço que não controlam.
É preciso politizar a internet e entender seu uso e funcionamento material na atualidade. Ao mesmo tempo, é preciso recuperar e analisar criticamente as utopias da comunicação que nos informam. Assim, poderemos entender as mudanças pelas quais passam o sistema informativo do mundo, podendo agir conscientemente sobre ele em direção a estruturas democráticas de comunicação. A ação e a cultura política não são decorrências mecanicamente determinadas por essas estruturas, mas podem tender para cenários desagregadores, autoritários e contrários aos direitos humanos se assim forem manipuladas.
*Por Rafael Evangelista/Outras Palavras
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