Anoiteceu. O sacolejar do ônibus na rodovia se juntou ao cansaço do dia e fez Luana Rosário adormecer. Ela não sabia, mas naquela noite viraria estatística. Estaria entre as 43,8% das mulheres que já sofreram assédio sexual dentro de transporte público, no Brasil, conforme pesquisa da organização humanitária internacional ActionAid.

Foto: Lucio Dorneles

Foto: Lucio Dorneles

Na poltrona ao lado, um passageiro. Mas tarde, ao despertar, a advogada e professora universitária viria descobrir que o homem não era um inofensivo vizinho de poltrona. Era um abusador. A mão daquele que viajava ao lado estava dentro das roupas dela, em contato com a pele.

Atônita e enojada, buscou amparo na Delegacia da Mulher de Itabuna, para onde o ônibus foi conduzido após denunciar o abuso sofrido. Não adiantou, o plantonista havia sumido. Luana não se calou. Sua denúncia fez entidades sociais, poderes públicos e a imprensa baiana despertar para esse crime silencioso. Ganhou duas aliadas: a Comissão de Proteção aos Direitos da Mulher da OAB e a líder da Bancada Feminina na Assembleia Legislativa, deputada estadual Luiza Maia (PT).

Deputada Luiza Maia, proponente da audiência e autora do projeto de lei. | Foto: Marcelo Ferrão

Deputada Luiza Maia, proponente da audiência e autora do projeto de lei. | Foto: Marcelo Ferrão

Combate em rede

O caso motivou a realização de uma audiência pública, no parlamento baiano, no dia 16 de junho. O ato, teve como fruto a disposição para um combate em rede multidisciplinar à prática, que tem assolado no estado, e culminou na apresentação de um projeto de lei que contra o assédio sexual no transporte público.

A deputada Luiza Maia protocolou na Casa proposição que obriga as empresas de ônibus a informar, caso solicitadas, o gênero do passageiro que já tenha adquirido bilhete para a poltrona ao lado. Ela tem esperança que a proposta se torne nacional e, como ocorreu com a Lei Maria da Penha, seja intitulada com o nome da vítima denunciante – no caso, Luana Rosário.

“Queremos garantir às mulheres, o direito a informação e a privacidade, sem que isso importe em violação aos direitos dos demais passageiros, sejam eles do sexo masculino ou feminino. Os dados fornecidos serão relativos apenas ao gênero”, justificou a parlamentar.

Professora e advogada Luna Rosário, vítima do assédio dentro de ônibus. | Foto: Marcelo Ferrão

Professora e advogada Luna Rosário, vítima do assédio dentro de ônibus. | Foto: Marcelo Ferrão

Luana Rosário, professora da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), destaca que os homens, quando pegam ônibus, só se preocupam em chegar bem em seus destinos. “Nós mulheres não, temos que nos preocupar para não termos nossos corpos violados. É lamentável que ainda vivamos numa sociedade perversamente machista, onde o homem acha que pode dispor do corpo da mulher da forma que quiser”, reclama.

Denunciar

“Uma das formas de violência contra a mulher, que tem crescido muito, é o assédio sexual no transporte coletivo. Nosso objetivo é escancarar isso para a sociedade. Temos propostas concretas, como transportes públicos de qualidade, pois ônibus vazios evitam esse tipo de prática. Precisamos ganhar a sociedade, tanto a mulher para reagir, quanto a realização de campanhas educativas”, reforça Luiza Maia.

A presidente do colegiado feminino da OAB baiana, a advogada Andrea Marques, frisa as mulheres precisam ter a coragem para denunciar, como fez Luana. “Precisamos verdadeiramente ter políticas públicas para coibir esse crime. Juntas somos mais fortes”.

Audiência pública que debateu o tema. | Foto: Marcelo Ferrão

Audiência pública que debateu o tema. | Foto: Marcelo Ferrão

Na mesma linha, a promotora Márcia Teixeira, do Ministério Público, destaca que as denúncias têm que ser feitas pelo Disque 180. “Registrar isso vai nos dá um número substancial que essa violência acontece, para que o estado e municípios façam campanha educacional de prevenção”, pontua.

Encoxadas

As “encoxadas” nos coletivos, que no passado já foram chamadas de “fazer fio terra”, precisam ser coibidas, com ações públicas e penais efetivas, na avaliação da desembargadora Nagila Brito, do Tribunal de Justiça. O investimento, de recursos, no atendimento especializado às vítimas é outra demanda. “O ideal é que em cada delegacia dessa nossa imensa Bahia a mulher seja atendida sem constrangimento, com o respeito que merece”, aponta.

Autoridades e sociedade civil debatem o problema. | Foto: Marcelo Ferrão

Autoridades e sociedade civil debatem o problema. | Foto: Marcelo Ferrão

“Eu também sofri esse tipo de assédio na adolescência, sei o quanto isto nos incomoda. Por isso, a Secretaria de Segurança Pública está aqui para pensarmos juntos ações para coibir e combater esse crime”, afirma a delegada Marta Monteiro, representante do governo do estado.

Já o major César Castro, representante do comandante Geral da Polícia Militar da Bahia, coronel Anselmo Brandão, defendeu que o acesso à informação é essencial. “Na PM, sensibilizamos nosso público interno, pois nossas policiais também sofrem violência. Precisamos treiná-los para atender as demandas de violência contra a mulher, sem constranger ainda mais as vítimas”.

Daniel Mota, do Sindicato dos Rodoviários, sugere a instalação de câmeras de segurança também nos ônibus do transporte intermunicipal, para inibir os casos de assédio: “Nesses ônibus intermunicipais ocorre grande número de estupros”.