Caio (Pedro Maia) busca o colo materno. A mãe (Aícha Marques), impávida, nem mesmo olha para o filho que, carente, disputa espaço para se debruçar no seu ventre. Ela mantém atenção fixa na televisão, que reporta a posse de José Sarney, primeiro presidente civil após o regime militar e que conduz o início da Nova República. Ele desiste do intento.
A cena é forte e traduz o recado que Depois da Chuva passa: a desilusão que contrasta com o clima de euforia decorrente da redemocratização do país, em 1984, quando os militares entregaram o poder após 20 anos de ditadura.
O estado de exceção se fora, mas não os conflitos que envolvem gerações. Caio é um adolescente que estuda num colégio particular e conservador. Está envolvido com um grupo de ativistas anarquistas, descrentes da política partidária tradicional. Atuam num espaço no Centro Histórico onde funciona uma rádio pirata. Eles fumam, atacam o sistema, tocam música experimental e debocham dos militantes da esquerda ortodoxa, inclusos os colegas que tentam reorganizar o grêmio estudantil. Trazem o embate na veia.
Rescaldos da crítica dos “engajados” sobre os “desbundados”, que marcou os anos de chumbo nos 70. Neste aspecto, o filme sugere o início da atuação do combativo jornal anarquista de Salvador, O Inimigo do Rei, alvo de críticas à direita e à esquerda no período em tela.
Dirigido por Cláudio Marques e Marília Hughes, Depois da Chuva, tem o mérito de apresentar alguns aspectos pouco conhecidos da Salvador dos meados dos 80. Situações que muitos jamais perceberam.
Os diretores se distanciaram dos estereótipos que carimbam a Soterópolis festeira. A capital baiana figura apenas como um acaso. Os apelos de baianidades e sentimentos pueris de pertencimento à terra, dão lugar à cidade com espaços tomados por bandas de punk rock, como Cracr! e Dever de Classe, onde reuniam jovens em shows artesanais, como os que ocorriam na fábrica abandonada da Ribeira.
A fotografia, outro ponto forte do filme, dá o diapasão estético da película mediante enquadramentos e luz que emolduram diálogos densos e inteligentes. O som do Dead Kennedys, sim, compõe bem com imagens de locais recônditos da capital baiana, que vivia a gênese da chamada axé music.
Destaque para a atuação de Pedro Maia, protagonista principal, jovem e excelente ator que interpreta Caio. O garoto não é promessa. É ator. E atua junto com um elenco competente e preparado. Elenco que esteve sob os cuidados do cineasta Reinofy Duarte, que certamente teve função determinante no desempenho do grupo.
Depois da Chuva é filme para o mundo assistir e debater. Feito do cinema baiano que só Glauber Rocha havia conseguido. Cláudio Marques e Marília Hughes foram ousados. E conseguiram. Que bom!
Ficha técnica:
Companhia Produtora: Coisa de Cinema
Produção Executiva: Cláudio Marques e Marília Hughes
Roteiro: Cláudio Marques
Fotografia: Ivo Lopes Araújo
Som: Guile Martins, Edson Secco
Direção de Arte, Figurino: Anita Dominoni
Preparação de atores: Reinofy Duarte
Montagem: Cláudio Marques Edição de Som: Edson Secco
Trilha Musical: Mateus Dantas, Nancy Viegas, Bandas Crac! e Dever de Classe Com: Pedro Maia, Sophia Corral, Aícha Marques e Talis Castro.