A série revivendo boas histórias da estrada continua neste mês de fevereiro. O Bahia na Lupa rememora reportagens antigas de alguns roteiros de viagem por nosso imenso território baiano. Gente, lugares, comidas, costumes…
O dia não foi fácil! Corre, corre, a reunião que não deu certo, estresse do trabalho e outras peculiaridades do dia a dia de qualquer cidadão soteropolitanamente brasileiro. Próximo passo, pegar um transporte público… o insólito buzú! A primeira impressão é que será mais um trajeto sufocante, com para para nos pontos de ônibus, lotação excessiva e outras peculiaridades. Até que, inesperadamente…
“Pessoal! Ô pessoal! Boa Tarde! Não precisa fingir que ‘tá’ dormindo não, pessoal! Trago boas notícias pra vocês, pessoal! Ô pessoal, são as deliciosas e medicinais balas de gengibre! Previne o pigarro na garganta, rouquidão, desentope as narinas e previne contra a gripe e o resfriado, pessoal! Atenção que vou falar o preço: É cinquenta!!! Calma, calma! Não precisa pular a janela não, pessoal! Não é R$ 50 mil, não é R$ 50, é apenas R$ 0,50, pessoal! Ô loirinha, não precisa fingir que ‘tá’ dormindo não! É só R$ 0,50! Preciso comprar o Mucilon da minha criança, pessoal! Se você me ajuda, a miséria do país diminui, pessoal! Ô pessoal”…
Com uma voz impostada, quase um locutor radiofônico, sorriso generoso e um ‘baleirês’ impecável, “Ezequiel” – identificação que trazia no crachá -, arranca muitos sorrisos dos passageiros daquele buzú, num sábado ensolarado em Salvador. Depois de Ezequiel, muitos outros “propagandistas” entraram no ônibus. Todos eles com aquela palavrinha-chave: “pessoal”!
Essa é uma atividade que já se firmou no contexto urbano da capital baiana. Os baleiros – vendedores de balas e outras guloseimas – tornam agradável a viagem de muita gente estressada. Tabuleiros de madeira ou improvisados com caixas de papelão, baldes transparentes, para que os seus produtos sejam visualizados como numa vitrine, ou apenas trouxinhas feitas com sacos plásticos. Estes e outros macetes são criados pelos baleiros para carregar suas mercadorias ‘gulosêimicas’.
Eles desenvolvem toda uma técnica de dicção, uma linguagem própria que facilita a venda dos seus produtos. Claro que existem alguns baleiros tímidos, acanhados. É o caso de Etevaldo de Jesus Araújo, de 34 anos: “Eu falo bem natural. Só ofereço os produtos que tenho. Bala de gengibre, jujuba, paçoca, nego-bom… Há baleiros bem mais criativos. Eles vendem mais. Eu sou muito acanhado”!
Business de rua
A viagem no buzú, naquela tarde de sábado, acaba, mas ela recomeça diariamente. Cada dia os baleiros oferecem incansavelmente seus produtos, com um padrão no discurso da maioria deles. “Primeiro precisamos saudar o motorista: ‘Bom dia motô’! Depois,… ‘Bom dia pessoal! Desculpa interromper o silêncio da viagem, pessoal! Olha pessoal, eu tenho as refrescantes pastilhas de hortelã, a goma de eucalipto medicinal. Na concorrência tá por 0,50 na minha mão tá por 0,30, pessoal’! O melhor preço é a linguagem do baleiro”, explica Ezequiel.
Uma outra palavra-chave muito utilizada Por esses vendedores ambulantes é “promoção”! É o que explica o baleiro Márcio dos Santos, 25 anos. Ele vive desse emprego informal na capital baiana: “Falar que os produtos estão em promoção convence o pessoal. Nós damos indicações farmacêuticas, características do produto, fabricante etc. Nós mesmos que construímos a nossa narrativa para vender os produtos”.
Mas, de que forma esse business das ruas é construído? Há uma referência na tevê, rádio ou internet para compor as propagandas? Márcio é reto: “Nada de referência, irmão! Atrás da embalagem de cada produto vêm as suas indicações, composição e dicas. Nós as lemos, e, a partir disso, fazemos as nossas propagandas. Ah! E nos preocupamos com a validade dos produtos também. Não vacilamos com isso”!
O baleiro Luciano Santos Bahia, 30 anos, que há 10 trabalha neste ramo, e é um dos diretores da União dos Baleiros do Estado da Bahia (Unibal), sindicato formado para servir como representante legal dos vendedores de bala. De uma das estações de transbordo da cidade, ele comenta a situação da categoria. Essas estações, inclusive, viraram uma espécie base para os baleiros, o ponto de chegada para o início do trabalho – geralmente começa às 8h da manhã -, e de término do “expediente” – entre 18h e 19h30. De segunda a sábado.
“Nós fizemos passeatas, manifestações, fomos à Varella (apresentador de um telejornal local). Três a quatro meses depois [nos idos de 2005], a prefeitura aceitou a nossa proposta. A Unibal é responsável pelo cadastramento dos baleiros. No ato da inscrição, cada vendedor paga uma taxa de R$ 10 e recebe uma guia, um colete e um crachá, que nos permite entrar nos ônibus sem que o motorista ‘bata com a porta’ em nossa cara! Depois, os baleiros cadastrados pagam R$ 5, mensal, para a manutenção do sindicato”, explana.
Interação com o público
“Às vezes fico sem graça no ônibus, pois alguns baleiros falam: ‘Ah pessoal! Vocês não precisam fingir que estão dormindo. Eu quero apresentar os meus produtos promocionais’! Mas, acho que eles são bem criativos. Quer dizer, nem todos. Alguns só falam: ‘Baleiro, baleiro, baleiro,…’! Outros falam da situação social: ‘Eu sou um pai de família, tô desempregado,…’! Eu presto atenção no jeito como eles se expressam”, conta a profissional de Serviço Social, Carina de Almeida Souza.
Assim como Carina, a terapeuta Ocupacional, Aline Alencar, utiliza o transporte público de Salvador e reclama que alguns baleiros incomodam: “O que eu mais encontro no ônibus são os baleios. Eu tampo os ouvidos e vou dormindo. Eles me estressam”. Ela continua: “Alguns falam ‘errado’, talvez para nos comover e podermos comprar. Porém, têm outros que falam de forma ‘sofisticada’. Isso demonstra zelo. Eles passam que, de fato, o baleiro é um profissional sério. Acabo comprando algumas balas. Fico com dor na consciência e compro para ajudar”.
Há baleiros que ganham entre R$ 600 e R$ 800, por mês, com a venda das guloseimas. É por isso que alguns sempre exclamam: “Baleiro de verdade não quer deixar de ser baleiro”. Eles fazem o próprio horário, não recebem ordem de nenhum “patrão”, possuem linguagem própria, o “baleirês”, e ainda criam suas próprias estratégias de marketing. “Pessoal, o pessoal…”!