Aquela mulher estava sempre na janela. Ela observava atentamente todo o movimento das pessoas que passavam ao descer as escadas do prédio de três andares. Como o seu apartamento ficava no térreo, pensava eu, era o lugar privilegiado para ver. O tempo foi passando e aquela realidade começou a me incomodar. O que aumentou minha inquietação foi quando dois amigos me contaram que ela comentou sobre a mudança de alguns eletrodomésticos que estávamos realizando na casa. Para mim, era como se ela estivesse me invadindo com o seu olhar. Entretanto, seguia minha vida sem muito saber acerca daquela mulher que aparentava mais de 55 anos.
Aos poucos, ao passar em frente a sua janela, fui respeitosamente aprendendo a saudá-la, já que ela não me era invisível e nem eu a ela. Entretanto, em um belo dia, a mulher me para e pergunta: Você tem um livro pra me emprestar? Eu fico aqui presa nessa janela o dia todo e não tenho nada pra fazer. Após esta fala, fui tocado profundamente, pois nunca tinha me questionado sobre o seu estar ali, na janela. A hipótese que me veio automaticamente à mente foi: meu Deus, ela deve ter alguma deficiência física que a incapacita de se movimentar. Daí, é bem capaz de sua permanência na janela ter relação com sua impossibilidade de movimento…
Saí, então, rapidamente para a minha residência e pensei: Meu Deus, e se fosse eu? Como seria minha vida, caso não pudesse mais andar? E, ao ficar mais velho, como seria? Teria eu algum vizinho capaz de se compadecer de mim e me dar um livro para ler, já que é algo, para mim, muito prazeroso? Naquele momento, meu coração foi movido pela compaixão e empatia que me possibilitavam me colocar no lugar dela, na janela… Afinal de contas, ao ajudá-la e ir ao seu encontro, estava indo ao meu e de minha humanidade.
Correndo para a minha biblioteca particular, comecei rapidamente a procurar um livro que tocasse aquela mulher e lhe fosse significativo. Deparei-me com um livro, com uma “pegada” evolucionista e que versava sobre a importância dos laços de sociabilidade para a constituição dos sujeitos humanos. Desci apressadamente e, vendo-a na janela, disse: Eis aqui o seu livro. Tomara que gostes. Ela, prontamente, me agradeceu… Voltei, então, para casa e disse ao meu companheiro: Filho, tive uma experiência fantástica agora. Preciso escrever… E já sei o nome do texto: Da janela… Ele, irônica e afetuosamente, deu risada e disse: hummmm, seiii…
Após alguns dias, a mulher da janela, pseudônimo e significante aqui utilizado, disse-me: Menino, acabei de ler o livro. Tinha tudo a ver comigo. Você tem algum outro livro pra me emprestar? Respondi: Claro, minha senhora. Sem problemas… Voltei ao meu apartamento e procurei um novo livro… Havia muitos mais de cunho acadêmicos e nada me agravada. Queria afetar aquela mulher, agradá-la. Almejava um livro com sentido para a sua existência, mesmo sabendo que o desejo e existência do outro é sempre mistério e perpassado pela sua dimensão subjetiva ou, como chamamos também em psicologia, pela singularidade.
Após breve procura, me lembrei de um livro que tinha acabado de comprar e que, logo em seus primeiros capítulos, falava sobre a nossa orfandade constitutiva. Em termos psicanalíticos, somos todos órfãos e sujeitos faltantes, marcados pela falta ao sermos lançados na existência. Sendo assim, estaremos condenados, enquanto viventes, a buscar “objetos” na cena do mundo que nos completem. Entretanto, a falta jamais deixará se existir. Dessa forma, estaremos durante toda a vida em processos de enlutamento, pois, diante das perdas constantes de nossa vida, o luto é necessário e curador, pois nos ajuda a lidar com nossas dores e com a dor do outro.
A mulher da janela me ensinou a não julgar o olhar do outro, pois nunca sabemos de que lugar o outro nos olha, bem como não sabemos sobre o nosso futuro. Aquela mulher era eu e você, pensava…
O nosso olhar é sempre perpassado pela nossa dimensão subjetiva e interpretações. Ao escrever este texto, agradeço a mulher que me ensinou que diferentes são as posições de nossa vida e o nosso olhar deve ser respeitado, bem como as relações que estabelecemos com o mundo e as pessoas.
(In)concluindo, questiono a você que me lê: Quais são as suas janelas? O que vês? És visto?