O papa Francisco, com seu jeito manso, sorriso suave, fala corajosa e sem arrogância, vai recuperando a força da palavra. Não digo nem da palavra de Deus. Não tenho autoridade, nem fé, para avançar nessa afirmação. Digo força da palavra, simplesmente. Talvez busque forças, inspiração na história de Jesus, aquela transmitida de variadas maneiras tempos afora, e que revela um homem capaz de ligar-se profundamente aos deserdados da sorte, aos explorados, aos mendigos, às prostitutas, a desdenhar da lei se ela contrariasse os direitos dos excluídos…
Por Emiliano José*
Não falo, não posso falar, como homem de fé, que não sou. Faço-o lembrando do escrito, do transmitido. Há a bíblia em tantas versões, monumento cultural da humanidade. Esse Jesus revelado ao longo do tempo, para além da verdade histórica, transmitiu noções de justiça, não estabeleceu dias para fazer o bem, recusou sempre a hipocrisia, nunca aceitou a lei dos fariseus, e nunca se afastou dos leprosos. As bem-aventuranças são um documento a ser lido sempre – os pobres, os que desprezam as riquezas, os que são abertos à solidariedade e à partilha, os que têm fome de liberdade e sede de justiça, estes os bem-aventurados.
Por isso tudo, por esse legado cultural, chamado palavra de Deus pelos que creem, imagino que o papa Francisco vá buscar nesse Jesus, a motivação para usar da espada – a espada flamejante da palavra. Sim, porque há outras interpretações, especialmente nesses tempos de fundamentalismos, de abominação da mulher, dos homossexuais, de igrejas voltadas à acumulação capitalista pura e simplesmente, e sem quaisquer inspirações derivadas das bem-aventuranças. Essas outras interpretações também pretendem estar buscando amparo em Jesus.
Em outubro de 2014, lançou a máxima de “nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos”. Foi durante o Primeiro Encontro Mundial de Movimentos Populares. Parecia um comunista falando – e por que não, se nos despirmos de preconceitos? A palavra comunista é tão bonita. Ali disse que o atual sistema não consegue se aguentar, e que devíamos nos escandalizar com o escândalo da fome, com as consequências da cultura do descartável, própria do capitalismo.
Escandalizou meio mundo ao dizer que a Igreja devia pedir perdão aos homossexuais, às mulheres e aos pobres. Abriu o coração para os ateus. Não é necessário crer em Deus para ser uma boa pessoa – afirmou. Do ponto de vista dele, a ideia tradicional de Deus não está atualizada. Uma pessoa pode ser espiritualizada sem ser religiosa. Para muitos, a natureza pode ser uma Igreja. Não é necessário ir à Igreja e dar dinheiro. E o maior escândalo desse discurso, de julho do ano passado, é o papa dizer que algumas das melhores pessoas da história eram ateus. E que muitos dos piores atos da história se fizeram em nome de Deus.
Lembro-me do poeta Pedro Tierra – nome de batismo Hamilton Pereira. Dizia que o cristianismo faz bem a algumas pessoas, não a todas. Ao padre Renzo, sobre quem escrevi um livro, fizera muito bem. Renzo, ao visitar tantos prisioneiros políticos durante a ditadura, escandalizou-se com o fato de ali só existir praticamente materialistas: com uma visão larga da sociedade, cheios de esperança, e prontos a quando saírem dali continuarem a luta por uma sociedade mais justa. Os cristãos não estavam lá. Foi atrás de vários teólogos para compreender isso. Concluiu: a esperança é maior que a fé.
Vivemos um momento no Brasil em que a palavra-de-ordem “nenhuma família em casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos” tornou-se mais do que nunca atual. A tentativa despropositada de um golpe e tudo aquilo que o governo interino vem fazendo, retirando direitos à velocidade supersônica, tornou-a essencial.
*Emiliano José é escritor e jornalista