Mesmo em tempos de intolerância, é possível debater, na formação infantil, valores como solidariedade, empatia e amor; e conceitos como igualdade de gêneros e o respeito à orientação sexual…

Por Lais Fontenelle*

Mãe, você vai morrer? E eu? Quando o papai vai morrer? Antes da gente? Quem morre primeiro: velho ou criança? Essas perguntas invadiram a minha casa na última semana e têm sido constantemente endereçadas a mim pela minha filha de apenas 4 anos, ávida por respostas. Sabemos que é nessa fase que as crianças começam a se questionar sobre vida e morte, justiça e violência, mas também sobre as diferenças de cor, gênero e até sociais. E as respostas a esses questionamentos nem sempre são fáceis para as famílias, porque envolvem crenças e valores, posicionamento político e inclusive questões religiosas. Árdua tarefa de se explicar a crianças pequenas que a única certeza que temos na vida é sobre a morte – que um dia nos assolará e que, apesar de certa, nunca estaremos preparados para a sua chegada inexorável.

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Mais difícil ainda tem sido achar explicações para os últimos acontecimentos que sangraram as manchetes dos jornais de todo o mundo: 49 pessoas que estavam dançando numa boate LGBT na Flórida, no último dia 12, foram mortas por um homem que entrou com muito ódio no coração e um rifle nas mãos e acabou tirando a vida de seres humanos inocentes e, em decorrência de seu ato, acabou morrendo também. Ou sobre o caso de Ítalo, menino de 10 anos, morto dentro de um carro por um tiro da PM em São Paulo. E ainda o caso do estupro de uma menina de 16 anos por 33 que filmaram o abuso naturalizando a cultura machista e do estupro. E tantos mais.

Minha filha de 4 anos não teve acesso a essas notícias, mas outras crianças de 10, 11, 12 anos – que estão nas redes sociais e ainda em processo de formação de valores e identidade – tiveram, e também ficaram sem respostas, como nós adultos. E ficaram sem resposta porque os fatos não têm explicação plausível. Pergunto-me, então: Como educar nossos filhos numa cultura de ódio, violência, intolerância e medo? Como passar valores mais humanos e solidários nesses tempos sem esperança? Como mostrar que a diversidade é nosso valor maior enquanto coletividade? E que nossas vidas e as dos outros merecem respeito?

Segundo notícia recente, o Brasil caiu 64 posições no ranking que avalia o nível de envolvimento da comunidade internacional quanto aos direitos de crianças e adolescentes, ficando em 107ª posição – atrás de países vizinhos como Argentina, Chile e Colômbia. Vale destacar que os principais problemas que levaram a essa queda incluem discriminação estrutural contra crianças indígenas e afrodescendentes, portadoras de deficiência, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais; e crianças vivendo nas ruas, em áreas rurais e remotas e em áreas urbanas marginalizadas, incluindo favelas. Pasmem! Alguns dos principais problemas relacionados aos direitos da infância em nosso país tratam de exclusão social, de raça, gênero e das diferenças de forma geral – além de violações de direitos básicos. Precisamos, portanto, urgentemente, educar para a diversidade e solidariedade.

É preciso recordar que nenhuma criança nasce violenta, intolerante, racista, homofóbica, altruísta ou sequer consumista. Esses são valores que elas vão adquirindo na relação com a família, escola e sociedade em geral. A cultura imprime suas marcas em nossos filhos e cabe a nós educá-los para uma cultura mais amorosa, menos preconceituosa e violenta, para que possamos ver a ascensão do valor à vida – nossa e do próximo – e para que não tenhamos que responder com tanta frequência a perguntas sobre os motivos injustificáveis para se abusar, matar ou discriminar. Tolerância, empatia e solidariedade devem ser, cada vez mais, temas incluídos nas escolas e dentro de nossas casas. Nossos filhos devem crescer com a noção de proteção dentro da coletividade que o recebe, para que não tenham medo do par e do entorno.

A dificuldade em aceitar o outro com suas escolhas, crenças, religiões, cor e sentimentos diversos não pode nunca ser justificativa para violência. Não deveríamos ter que explicar aos pequenos os motivos para não se matar plantas, animais, negros, mulheres ou homossexuais. Isso deveria estar dado. A tolerância se faz urgente nesses tempos sombrios que vivemos. Precisamos falar de igualdade e amor. Explicar que negros e brancos são iguais e têm os mesmos direitos e que mulheres não podem ser vítimas de qualquer tipo de assédio dos homens e que homens podem amar outros homens, assim como mulheres podem gostar de viver junto com outras mulheres. Tudo isso deveria ser bem mais fácil de se explicar a uma criança do que responder por que um homem matou 49 inocentes ou porque algumas pessoas não têm cobertores no frio. As crianças entendem muito mais respostas ligadas ao amor do que ao ódio.

Outro dia recebemos em casa um amigo que não víamos fazia tempo e ele chegou de saia. Assim que minha pequena o viu falou: “Por que você está de saia? Acho que nunca vi um homem de saia, sabe. Gostei muito de você ser misturadinho.” E nosso amigo respondeu, concretamente, como se deve ser com as crianças: “Porque eu gosto de saia e como estava sol peguei emprestado de uma amiga.” Legal, respondeu ela, acrescentando ser uma menina de cabelos curtos porque os prefere aos compridos. Simples assim. Agora, difícil tem sido explicar por que algumas crianças vivem em orfanatos e não podemos trazê-las para nossa casa- depois de uma visita a um desses lares de crianças com a escola. “As crianças não deveriam todas ter direito a uma moradia e uma família? Eu li no livro Eu tenho direito de ser criança no projeto da escola”- comentou a pequena questionadora. Livro lindo de Aurélia Fronty e Alain Serres, que ajuda com algumas respostas para nossos filhos e nos deixa totalmente silenciados para outras.

Seguimos na esperança de que tempos menos injustos virão e que abusos e intolerâncias não prevalecerão. Educar é sem dúvida a chave da transformação de futuros cidadãos em seres mais fraternos, respeitosos e amorosos.

Lais Fontenelle Pereira é mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio e autora de livros infantis, é especialista no tema Criança, Consumo e Mídia. Ativista pelos direitos da criança frente às relações de consumo, foi Psicóloga do Instituto Alana por uma década e hoje presta consultoria em temas ligados a infância, educação e consumo.

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