As mãos agitadas tiravam da frente, com ágil reflexo, os galhos das árvores e arbustos. O suor escorria em seus corpos negros. Ofegavam. Olhos vermelhos, veias do rosto alteradas e pernas ditavam o ritmo frenético da corrida. Eles só queriam chegar à Pedra do Buraco da Onça – a hoje rebatizada Pedra de Xangô -, o refúgio mais seguro naquelas ocasiões. Coberta pelos galhos das árvores estava ela, uma pedra secular, que o tempo não conseguiu destruir, apenas desnudá-la. Esconderijo de outrora, hoje a estrutura rochosa sofre ameaça de ser devastada pelos paradoxos da especulação imobiliária da cidade do Salvador.

Foto: Cadu Freitas/BnL

Foto: Cadu Freitas/BnL

Era mais uma fuga.

A pressa em se distanciar o mais rápido possível do velho engenho era o único pensamento que permeava a cabeça deles. Vez ou outra lapsos de reflexão, sobre o que poderia ocorrer caso fossem pegos pelos capatazes, lhes roubavam a atenção durante a escapada.

A mata parecia se compadecer da situação daqueles bravos guerreiros e lhes favorecia com uma vegetação mais densa e fechada à medida que adentravam nela. Triste sina aguardava aqueles fugitivos se fossem apanhados. Eles corriam ainda mais rápido, as escoriações na pele deixadas pelos espinhos das plantas não os incomodavam. Chegar à Pedra de Xangô era o que importava, lá não seriam capturados.

– Esta pedra é oca. Ela tem 7 metros de altura e de diâmetro. Só os escravos a conheciam. Quando eles fugiam das fazendas dessa região, lá nos idos dos anos de 1820. Os negros corriam por dentro da mata fechada e se escondiam dentro dela. Já a chamaram de ‘Pedra Furada’, mas o nome que conhecemos de muitos anos é este: Pedra do Buraco da Onça. Ela ficava camuflada pelo matagal. Hoje ela está descoberta, não tem mais as árvores, a capoeira sumiu. Só tem pouquíssimas espécies e é rodeada, hoje, por condomínios populares.

Enquanto narra histórias da Bahia que os livros não contam, Seu Fernando Cavalcante Vanderlei, de 72 anos, adentra o interior da “caverna” que guarda nas paredes marcas de um tempo de sofrimento e escravidão, do povo vindo da África, que até hoje é motivo de constrangimentos e conflitos por parte da sociedade contemporânea. Acredita-se que foi a pedra a responsável pelo surgimento de quilombos urbanos na capital da Bahia.

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Seu Fernando Cavalcante Vanderlei. | Foto: André Frutuôso

Orobu

Na “Pré-história” da Estrada Velha do Aeroporto (Eva), rodovia urbana que corta a região onde se localiza a pedra secular, ‘talhada’ em Cajazeiras, consta ainda a história de um povo lutador, que não se resignou e que sobrevive até os dias de hoje. Na região, que hoje abriga os diversos bairros que margeiam ou estão no entorno da Eva, existia o quilombo do Orobu, mais um representante da resistência negra soteropolitana do século XVIII.

Uma batalha sangrenta dizimou este quilombo urbano.

Eles já sabiam disso. Temiam a derrota, mas não se curvavam jamais. Os ancestrais africanos – orixás, nkisis ou vodunsis – haveriam de resguardá-los. O repique dos tambores do candomblé soava mais forte.

O combate começara.

Foto: André Frutuôso

Foto: André Frutuôso

As armas rústicas dos negros não intimidava o forte arsenal bélico do Batalhão Pirajá, do Governo. Não demorou muito e os guerreiros descendentes de africanos, trazidos à força outrora para o Brasil, já estavam massacrados. As tropas do Governo não tiveram piedade. O Quilombo do Orobu resistiu bravamente o quanto pôde, mas havia uma desvantagem bélica e de efetivo considerável. Era o dia 17 de dezembro de 1826 em uma Salvador banhada de sangue. Essa triste sina parecia premeditar o futuro da região onde hoje há a Estrada Velha, estereotipada pelas estatísticas de violência e criminalidade.

O complô

“Eles ‘plantaram’ uma prova para nos incriminar”, afirmaria os quilombolas do Orobu, se vivessem nos dias de hoje, em referência a uma falsa acusação feita pelo poder policial. Ironia do destino ou não, os ventos que sopraram às avessas, ultrapassaram o século XXI numa projeção retrógada e pararam na década de 1820, na porção norte da cidade do Salvador, sentenciaram aquele povo à morte. Os moradores do quilombo do Orobu foram acusados pelas tropas do Batalhão Pirajá de cometerem diversos assassinatos, roubos, incêndios de casas e até o rapto de uma menina branca. Essa foi a deixa que os militares precisavam para agir. Deu no que deu. Os arcos e flechas, facões, foices e espadas antigas dos negros não foram páreos para a fúria das armas de fogo dos soldados.

Aflição, dor por ver tantos entes, tantos irmãos, mortos, agonizando, encharcados de sangue, o desespero de ver os ideais suprimidos levou os quilombolas do Orobu a recuarem. Mas, o tormento não se findara com a retirada do combate, os negros dessa região sofreram ainda uma cruel perseguição policial. Prisões e destruição de objetos dos cultos de matrizes africanas eram algumas das perversidades cometidas pelos combatentes do Governo.

Até a década de 1950 os quilombolas remanescentes daquela época costumavam negociar as produções deles nas cidades circunvizinhas, por meio do comércio informal, por causa ainda dessas perseguições que sofriam.

– Fica ali na entrada do Coqueiro Grande, que leva às Cajazeiras, um dos mais antigos candomblés da Eva. Temos muitas histórias aqui na velha estrada, mas nada se compara a esta. Acreditamos que esse terreiro é descendente dos guerreiros do Quilombo do Orobu.

Foto: André Luis Gomes

Foto: André Luis Gomes

O guardião da memória histórica da Estrada Velha do Aeroporto não escondia a vaidade em poder ser um dos portadores de tão belas recordações. A beleza, não estética, mas poética, a beleza da luta, da força de um lugar, dos habitantes em serem visíveis, a batalha que continua sendo travada era o que deixava o saudoso Fernando Vanderlei mais lisonjeado. Com o dedo em riste, Seu Fernando, de dentro do Fiat Uno modelo 86, cinza, sinalizava o caminho que deveria ser percorrido até a fonte de onde emanava a nascente das lembranças da biografia da Estrada Velha.

Preservação

– Para encontrar a Pedra do Buraco da Onça é muito fácil nos dias de hoje, não há mais a mata fechada para a ser desbravada. Basta pegar a pista à direita, após o SAC [Serviço de Atendimento ao Cidadão] de Fazenda Grande III [Cajazeiras], e chegar ao acesso do bairro da Boca da Mata. Não é difícil localizá-la, ela é enorme e está bem à vista. Hoje, os adeptos do candomblé deixam oferendas para seus orixás. A história vai se locupletando.

Foto: Cadu Freitas/BnL

Foto: Cadu Freitas/BnL

As memórias de Seu Fernando são atestadas por historiados e pela Associação Pássaro das Águas, em Cajazeiras, populoso bairro soteropolitano que abriga cerca de 500 outros terreiros de candomblé. Mãe Iara é quem tem buscado junto ao poder público a preservação do espaço sagrado, para o povo de santo. A mãe de santo não esconde a ninguém que faz muitos anos foi deixar oferendas aos orixás e se surpreendeu com a Pedra do Buraco da Onça, no meio da vasta Mata Atlântica. Não se alongou em buscar no Ifá e descobrir que quem respondia naquela pedra era o orixá Xangô, daí veio o rebatismo para Pedra de Xangô. Nos idos de 2005 a pedra ficou aparente, devido a abertura da avenida.

 

*Colaboraram André Frutuôso e André Luis Gomes 

Esta reportagem é a primeira da série especial sobre a Estrada Velha do Aeroporto (Eva), ou Avenida Aliomar Baleeiro, uma antiga artéria urbana da capital da Bahia, construída na Segunda Guerra Mundial, mais precisamente entre 1943 e 1944, por fuzileiros navais norte-americanos. A via tinha a missão de ligar a Base Naval, em São Tomé de Paripe, à Base Aérea, ao Aeroporto, para o transporte de materiais bélicos e logísticos das tropas. A obra, aqui fragmentada, integra o livro reportagem “Histórias de Eva – Outra vez toque de recolher na Pedra do Buraco da Onça”, de autoria dos jornalistas Carlos Eduardo Freitas, André Frutuôso e André Luis Gomes.   

 

REFERÊNCIAS:

Pesquisa jornalística: 

Periódicos antigos: Jornais Diário de Notícias, Correio da Bahia e A Tarde. Instituto de Pesquisa Gregório de Matos e Arquivo Público da Biblioteca Central do Estado da Bahia. 

Referências Videográficas:  

RISÉRIO, Antônio e Freire, Floro. Retratos de um tempo: um novo olhar sobre a cidade da Bahia. Salvador, 2000. (Documentário) 

Referências Bibliográficas:  

RISÉRIO, Antônio. Uma História da Cidade da Bahia. 2ª edição. Rio de Janeiro: Versal, 2004. 

SAMPAIO, Consuelo Novaes. 50 anos de urbanização – Salvador da Bahia no século XIX. Rio de janeiro, 2005. 

TAVARES, Luis Henrique Dias. História da Bahia. São Paulo: Editora UNESP: Salvador, BA: EDUFBA, 2001 

PASSOS, Walter de Oliveira. Terra de Quilombos – Salvador: Realidade Brasileira. 1996, 1ª edição. 

OLIVEIRA, Yves Orlando Tito de. Doutrinação Municipalista. Salvador, Bahia (Brasil), 1947, Ed. Livraria Progreso.  

RAMOS, Cleidiana. Quilombos Urbanos. Jornal A Tarde. Texto enviando para a lista da Rede do 3° Setor, em 13 de maio de 2005. 

FERNANDES, Rosali  Braga. Processos Recentes de Urbanização – Segregação em Salvador: o Miolo, Região Popular e Estratégica da Cidade. Universidade de Barcelona, Revista Bibliográfica de Geografia e Ciências Sociais: 2004. 

Documentos Oficiais: 

Programa Carta de Crédito Fgts Operações Coletivas. Comunidade Estrada Velha do Aeroporto – Projeto de Trabalho Técnico Social – Projeto Desenvolvimento Comunitário, Educação Ambiental e Geração de Trabalho e Renda – agosto de 2007. Elaborado pela Conder /Governo do Estado da Bahia. 

Registros de Homicídios Dolosos na Estrada Velha do Aeroporto – CEDEP/Polícia Civil/Secretária de Segurança Pública – SSP/ Governo do Estado da Bahia. 2006-2007.