Conquistar a neutralidade da Internet e o acesso universal para todos os cidadãos são as disputas da Bastilha do século XXI. Guerra das guerras, no Brasil e no mundo. No último dia 09/12 a Câmara dos Deputados promoveu audiência pública em Salvador para debater a PEC 479/2010, que prevê o acesso à rede como direito social incluso no Artigo 5º da Constituição. Utopia? Não, desafio. A Internet não é apenas um meio de comunicação. É estrutura estruturante da sociedade que se espraia por todas as atividades. Na economia, educação, cultura, lazer, saúde e política. Em pouco tempo, a exclusão ao acesso transformará milhões de pessoas em analfabetos digitais.
No Brasil, o quadro indica situação preocupante. Pesquisa do Comitê Gestor da Internet, realizada em 2012, sobre o uso das tecnologias de comunicação e informação, a TIC Domicílios e Empresas, revela que 45% da população brasileira acima de 10 anos nunca usaram a rede.
Desequilíbrio que também se acentua entre as regiões. No Norte, o acesso só alcança 21% da população; no Nordeste, 27%. Já no Sudeste, 48%; no Sul 47%; e Centro-Oeste 39%. Comparando-se o acesso nas áreas urbana e rural, na primeira, 44% dos domicílios são contemplados; nas áreas rurais, apenas 10%.
A luz laranja, talvez vermelha, está acesa. O avanço à inclusão depende de dois movimentos. Para que a PEC 479/2010 seja implementada, é necessário que antes outro projeto de lei, o PL 2126/11, a Lei do Marco Civil, seja aprovado. O pomo da discórdia: manter, ou não, a neutralidade na Internet? A díade se traduz em: quais interesses devem prevalecer, os da população ou das operadoras de telefonia e demais players da Telecom?
O novelo é complexo. O Planalto resistirá, de fato, à pressão dessas corporações no texto que definirá a legislação para o funcionamento da web no Brasil? O relator do PL, deputado Alessandro Molon (PT-RJ), garante manter a neutralidade no documento original. No entanto, o líder do PMDB, Eduardo Cunha (RJ), tem dado declarações ambíguas, se inclinando aos interesses da indústria da telecom. As operadoras de telefonia se opõem ao conceito de neutralidade conforme disposto no relatório de Molon. Entendem que limita seus negócios.
E o que significa essa disputa? O conceito de neutralidade previsto no PL determina que não se pode depreciar o acesso a um site ou determinado tipo de conteúdo. Ou seja, a aquisição por parte do consumidor de 10 megabytes, por exemplo, assegura que ele não pode ter esta velocidade reduzida para acessar um site que não seja parceiro do provedor; ou mesmo ter de pagar mais para acessar um vídeo ou usar aplicações em streaming. O texto também deixa claro que a depreciação só pode ocorrer por razões técnicas.
As empresas da área temem que, caso aprovado na íntegra, o PL possa impedir a venda de pacotes com diferentes velocidades ou franquias de dados.
Vivo, Claro, TIM, GVT, Oi etc. pretendem pôr “cercas” na web, que passaria a funcionar à semelhança da TV paga. O usuário navegaria na net conforme o tipo de pacote adquirido. Esta seria a primeira camada do problema.
A segunda, decorrente da primeira, é uma questão política. As corporações da indústria de Telecom intentam acessar os dados dos usuários para diversos fins. Vale lembrar que a bisbilhotagem internacional perpetrada pelos EUA e denunciada pelo ex-espião Edward Snowden teve o suporte logístico deste setor transnacional. E foi o fator que motivou a decisão da presidenta Dilma Rousseff em pedir a aceleração do PL no Congresso.
Controle político e mercado se imbricam. Caso as corporações de telefonia retalhem a rede em “fazendinhas” para os usuários-clientes, elas quebrarão o ideário da Internet como galáxia de informação e de livre busca de conteúdos. Estratégia que também atinge, em cheio, a produção e difusão de plataformas e softwares livres, uma vez que os pacotes tecnológicos certamente virão amarrados às tecnologias associadas e difundidas pelas operadoras. Golpe mortal no que muitos entendem como vetor futuro aos novos modelos de produção compartilhada e socializada.
A Internet representa a última fronteira da mídia não garroteada, na sua lógica de funcionamento, pelo neoliberalismo e seus desmembramentos políticos. A liberdade de atuação na web sem censura e filtros do Estado e de corporações é o que tem garantido canais de manifestação e voz a inúmeros segmentos da sociedade. E é o que pode assegurar o alvorecer de uma nova economia mundial sustentada em outros parâmetros éticos.
A ciberguerra que se põe em curso é que norteará a consolidação ou não da radicalização da democracia, no Brasil e no mundo. A aprovação do Marco Civil com neutralidade e da PEC 479/2010 é o nó górdio dessa disputa na seara brasileira, que terá expressivo impacto no round internacional.