Salvador, 12 de janeiro. Sou convidado para comemorar o aniversário de um amigo em uma pizzaria da Boca do Rio. Faz uma noite de muito calor. O estabelecimento tem como diferencial o fato de servir pizza metro – 1 metro de pizza sobre um tabuleiro de madeira para o nosso bel-prazer, esperança de que nossa fome seja enviada para o quinto dos infernos.
Ao ler o cardápio, um amigo faz o pedido, mas o garçom logo anuncia a primeira frustração da noite:
– Senhor, infelizmente acabou o camarão.
Não bastasse a ausência do saboroso fruto do mar como ingrediente, observamos também que não há climatização na pizzaria. A decoração rústica é até bem interessante, mas nossa capacidade de admirá-la vai para as cucuias na falta de um mísero ventilador. Todos suam, enquanto comem pizza. No verão de Salvador…
Mas, ok! Já são 21h, o amigo comemora mais uma primavera e trocar de local para celebrar pode dar muito trabalho. Pizza vai, pizza vem, cerveja vai, cerveja vem e, ops! O garçom, tal qual um porta-voz do apocalipse, informa agora que acabou a cerveja! Como assim? Sem camarão, sem ventilação e sem cerveja???
Assim não tem jeito.
– A conta, por favor! E acabamos à noite rumo a um bar onde ao menos houvesse… cerveja…
Salvador, 16 de janeiro. Pego um ônibus na orla para ir ao cinema. A linha é Praça da Sé. É fácil observar que há muitos turistas no interior do coletivo, assim como em toda a cidade, afinal, estamos no verão, trata-se de uma cidade turística e o dólar está nas alturas.
Sento próximo ao cobrador. Do lado de fora, de uma das paradas de ônibus do Rio Vermelho, vejo uma turista, provavelmente americana, perguntar ao motorista se o coletivo passa no Pelourinho. Ele não compreende a indagação da gringa e segue em frente. Já na Ladeira da Barra, um outro turista, pergunta ao cobrador se o ônibus vai até o Pelourinho. Ele responde:
– Praça da Sé.
O turista, sem entender, pergunta novamente:
– Pelourinho?
E ele: – Praça da Sé. Sem mais.
Ora, se o fim de linha do ônibus é a Praça da Sé, basta caminhar alguns metros para chegar ao Pelourinho… Basta informar isso, o que não ocorre. Como estava próximo, consigo socorrer o turista. Aliás, são poucas as paradas de ônibus de Salvador que contam com informativos sobre os destinos das linhas passantes nos pontos. E quando há, muitas vezes o vandalismo acaba com elas. Falha o poder público e falham os cidadãos. Falhamos todos.
Privilegiada por suas belezas naturais, Salvador precisa melhorar (e muito) na qualidade dos serviços/Foto: Valter Pontes/Agecom/Fotos Públicas
Reflito sobre tudo isso. O quanto Salvador é despreparada para atender tanto nativos, quanto visitantes. Não responsabilizo garçons, cobradores, motoristas, baianas de acarajé e outros profissionais. Embora muitas vezes o problema seja falta de educação das pessoas, na maioria dos casos, a falta de capacitação dos profissionais é o xis da questão. Eles ingressam no mercado de trabalho, atravessam rotinas estressantes, ganham salários de fome e, muitas vezes, não são preparados para o atendimento.
Alguém já viu uma empresa de ônibus oferecendo curso básico de inglês e espanhol para seus funcionários? Elas lucram milhões todos os anos, não é mesmo? Quanto disso é investido em qualidade? Da totalidade de garçons, baianas de acarajé e taxistas, quantos possuem capacitação para o atendimento? E governo do Estado e Prefeitura, o que fazem a respeito? E se fazem algo, tem sido suficiente? Basta andar nas ruas da cidade para se ter a resposta. Os soteropolitanos estão insatisfeitos. Os turistas também, mesmo que estejam encantados em meio a uma batucada do Olodum.
De tudo o que essa discussão possa ou não render, a única explicação que não aceito é a de que a péssima qualidade do atendimento que vemos em Salvador (salvo raras exceções), seja pelo fato de que somos nordestinos. Isso é racismo. O que falta são investimentos em educação e capacitação. Uma entrevista que o brilhante antropólogo Ordep Serra concedeu a mim, em junho de 2014, dá uma aula a respeito. O professor diz o seguinte:
Costumo dizer que o racismo é a sociologia dos imbecis. Oferece uma explicação aparente, simplória, confortável para a preguiça intelectual de quem não enfrenta seriamente o desafio de problemas sociais complexos. Do ponto de vista antropológico, não há nada mais desmoralizado do que as teorias racistas. A ciência há muito já as atirou ao lixo das hipóteses falsas, bisonhas, primárias, incongruentes. Mas o racismo é tenaz. Alimenta-se de má-fé. A qualidade dos serviços nada tem a ver com a origem étnica ou “racial” de quem os presta. Reflete apenas o grau de preparação (educação) técnica desse contingente. Que investimento é feito na qualificação dos prestadores de serviço no Nordeste ou lá onde for? Como eles são contemplados na distribuição de renda, de infraestrutura, de equipamentos, de recursos culturais? A má-fé do apelo à tese racista tenta esconder a reprodução sistêmica da desigualdade regional no país. E reflete uma ignorância teimosa, grosseira.
Sonho mesmo é com o dia em que Salvador deixe de ser apenas a “cidade da alegria”, famosa por sua cultura ímpar, capacidade de promover festas e o sorriso largo de seu povo. São características importantes, mas podemos ir muito mais além. Já passou a hora de a primeira capital do Brasil ser também uma cidade referência em serviços, que atenda bem seus moradores e visitantes. Não há melhor propaganda do que isso.