País supera, aos poucos, preconceito colonial que via sua invenção gastronômica como inferior. Parte da cultura nacional, destilado é diverso — talvez como nenhum outro…
No Carnaval de 2009, deixei de lado os bloquinhos de São Paulo, peguei minha câmera de foto e vídeo e fui visitar meu primeiro alambique de cachaça. Em Mococa (SP), cidade de leite, café e aguardente de cana, começava o Mapa da Cachaça – projeto de valorização do destilado como patrimônio cultural e parte importante da gastronomia nacional. Sete carnavais se passaram desde então. O mapa que começou como hobby virou trabalho. Fizemos livros, site, vídeos, participamos de muitos eventos e viagens, além de, claro, provarmos das melhores cachaças de alambique. Começo agora apresentando algumas doses das minhas experiências com cachaça aqui no Outras Palavras. Como primeiro artigo faço uma reflexão nesse começo de ano listando alguns motivos para falarmos com orgulho da caninha e finalizo com uma dica de cachaça de alambique para animar também o pós-folias.
1. Cachaça é bebida brasileira
Existem aguardentes de cana produzidas em outros países, a mais famosa delas é o rum. No entanto, para uma aguardente de cana ser chamada de cachaça ela deve ser produzida no Brasil. Além disso, a bebida deve ter como matéria prima a garapa (o caldo da cana) e ter teor alcoólico entre 38˚a 48˚. Assim como os franceses têm o champanhe, os mexicanos o mezcal e os russos a vodka, nós brasileiros temos a cachaça como bebida nacional.
2. Destilado brasileiro é o mais antigo da América
Existem duas versões que explicam o surgimento da cachaça. Uma delas diz que ela teria sido destilada pela primeira vez no litoral de São Paulo entre 1530 e 1540. Mas uma versão cada vez mais aceita pelos historiadores afirma que em Itamaracá (PE) no ano de 1516 já se produzia a aguardente. Em 2016, portanto, comemoram-se 500 anos de cachaça! Muitas referências afirmam que o rum caribenho é o destilado mais antigo da América. Mas em Pernambuco, onde os holandeses se instalaram nos primeiros anos de 1600, uma aguardente de cana feita do melaço era produzida em grande escala. Quando os portugueses dominaram essa região, os holandeses partiram para as ilhas caribenhas e com eles levaram também as técnicas de destilação da aguardente de cana. E por lá, a bebida passou a ser chamada de rum e ganhou fama mundial com o talento holandês para fazer negócios com a Companhia das Índias Ocidentais.
3. Madeiras e mais madeiras
A cachaça pode ser envelhecida em mais de 30 tipos de madeiras nacionais. Se uísque, tequila e rum são envelhecidos apenas no carvalho, a cachaça pode ser envelhecida e armezenada em bálsamo, umburana, jequitibá, ipê, tapinhoã e muitas outras. Cada madeira concede uma cor, um aroma e um sabor característico. Atualmente, estou desenvolvendo uma pesquisa com 75 “chips” de madeira (são como peças de dominó) da Amazônia infusionadas em cachaça – o objetivo é mapear os aromas e sabores da nossa floresta tropical.
4. As diferentes receitas de produção
Existem mais de 40 mil unidades de produção de cachaça espalhadas por praticamente todos os estados brasileiros – o que torna meu trabalho bastante divertido e desafiador. Dessas, apenas 4 mil marcas são formalizadas – legalizar um alambique no ministério da Agricultura pode inviabilizar a produção devido os imposto elevados. O que se percebe visitando esses alambiques são as diferentes receitas de produção que poderiam caracterizar um terroir para cachaça (ou como gostamos de chamar: um território da cachaça). Na região deSalinas prevalecem cachaças com alto teor alcoólico e aromas que remetem às especiarias do bálsamo ou ao adocicado da amburana. A cachaça branca daquela região é tão agressiva que o envelhecimento é etapa fundamental. O conhecimento das técnicas do uso de madeiras nativas tornou a região famosa. Já no interior do Rio Grande do Sul, as cachaças são mais delicadas e apresentam aromas florais provenientes da fermentação por leveduras selecionadas – uma técnica nova e bem difundida no estado. Por influência da industria dos vinhos gaúchos, a prática de tosta de madeiras e blends com carvalho europeu está se destacando no sul do país.
Em Paraty, Vale do Paraiba e em muitas regiões de Minas utilizam-se ingredientes naturais durante a fermentação, como o fubá de milho, o farelo de arroz e até a mandioca. A chamada cachaça caipira utiliza sempre o fubá de milho e limão durante a fermentação – e os consumidores locais gostam da cachaça branquinha (aquela que não passa por madeira). Outros produtores possuem pequenos alambiques de cobre aquecidos por fogo direto, enquanto alambiques mais novos são aquecidos por caldeiras a vapor. Essas técnicas podem see antigas ou modernas, mas todas favorecem a criação de aromas e sabores, caraterizando algumas regiões e estilos de produção.
5. Garrafadas
As garrafadas são misturas de cachaça com frutas, raízes, ervas ou até mesmo caranguejos, insetos, morcegos e barbatana de peixes. Usadas como medicamento, para lazer ou em rituais religiosos, as garrafadas são muito comuns em diversos cantos do Brasil. Atualmente, tenho me dedicado ao mapeamento sensorial das diferentes plantas do cerrado, tendo na cachaça um vetor para extrair os aromas da nossa flora. Mas reconhecer e registrar o valor cultural dessas ”poções” é um trabalho que precisa ser feito. Por exemplo, em Monte Alegre do Sul, no interior de São Paulo, toda Páscoa os moradores saem na luz da lua para colher, no mato, guiné e arruda e infusionar em cachaça. Na manhã seguinte, moradores da cidade e visitantes participam do ritual do “Fecha Corpo”: ao beber a garrafada acreditam conseguir proteção para o corpo e para alma.
Cachaça Santo Mario Prata – Catanduva – São Paulo
Não é difícil encontrar no estado de São Paulo famílias produtoras de cachaça com sobrenome italiano (até achei certa vez um alambique Jannuzzi, mas essa história acompanha uma próxima dose). A cachaça da vez é a Santo Mário Prata, produzida pela família Seghese em Catanduva (SP) desde 1975. A produção partiu do sonho de Mário, descendente de produtores de grappa da Lombardia, no norte da Itália. Mario Seghese começou sua produção recolhendo na estrada as canas que os caminhões em direção ao Engenho Central de Piracicaba deixavam cair pelo caminho. Em 1983, funda o Engenho Santo Mario e começa a produzir em alambique de cobre as cachaças e licores que levam seu nome. A cachaça Santo Mario Prata tem como diferencial a armazenagem em tonéis de amendoim, madeira nobre brasileira (em extinção – por isso são mais raras de encontrar) que não interfere na cor da bebida e realça o aroma fresco e frutado da cana. Uma característica dessa cachaça é a sensação na boca que lembra água de coco.
Sugestão de receita:
Em Catanduva, localizado junto ao Engenho Santo Mario, está também o Museu da Cachaça, que abriga um dos maiores acervos do gênero no Brasil. Em seu interior, o visitante depara-se com uma coleção que hoje conta com mais de 5000 garrafas da bebida, colecionadas por “Seo Mario” ao longo de 40 anos.
*Por Felipe Jannuzzi, editor do Mapa da Cachaça/Outras Palavras