A presidente precisa compreender que só receberá insultos e desprezo dos conservadores, enquanto continuar empenhada em ceder a suas exigências…
Se alguém escrever, no futuro, uma crônica sobre os grandes erros de comunicação da década, o discurso feito ontem, em cadeia de TV, pela presidente Dilma Roussef estará entre eles. No final da semana passada, as pressões que o Palácio do Planalto sofre desde o início do segundo mandato haviam finalmente amainado, suplantadas pela divulgação da lista dos parlamentares implicados na Operação Lava Jato. Estavam na berlinda grandes adversários do governo (como o presidente da Câmara, Eduardo Cunha) e desafetos recentes (com o presidente do Senado, Renan Calheiros). Nada obrigava a Dilma a se pronunciar.
Sua fala e a repercussão negativa instantânea que ela despertou – a partir dos bairros ricos e de classe média, mas reverberada instantaneamente pela mídia – inverteram a tendência. Nos próximos dias, o “panelaço” e os insultos disparados contra a presidente serão assunto obrigatório tanto nas rodas de uísque, em terraços gourmet, quanto nos ônibus lotados. Jogarão lenha na fogueira das manifestações pelo impeachment, marcadas para 15 de março. Abrirão espaço para que Cunha, Renan e seus iguais obtenham mais concessões do Palácio do Planalto, nos próximos dias. E, mais importante, paralisarão os apoiadores do governo – porque são uma síntese da sinuca em que este se colocou, quando rendeu-se à agenda de seus adversários, após uma eleição polarizada. Eis algumas hipóteses, para examinar o discurso de ontem e o que ele revela sobre o cenário político atual.
- A vaia comprova: tentar satisfazer as elites pode ser suicídio:
Os xingamentos dirigidos ontem contra Dilma são uma metáfora do desprezo que os conservadores lhe dedicam, desde que ela recuou do que propôs em campanha (“Muda Mais”) e passou a adotar parte importante do programa dos adversários. Todo o discurso, marcado por um tom professoral, foi voltado a tentar “explicar” esta reviravolta, que fez a popularidade da presidente despencar e enfrenta obstáculos no próprio Congresso Nacional.
Para Dilma, o Estado tornou-se incapaz de manter os benefícios sociais, o crescimento da economia, a geração de empregos, o aumento real dos salários. “Absorvemos a carga negativa até onde podíamos e agora temos que dividir parte deste esforço com todos os setores da sociedade”, disse ela, sem apresentar dados que justificassem a afirmação. O argumento é o mesmo sustentado por intelectuais conservadores desde o primeiro governo Lula e assumido, em parte, por Aécio Neves durante a campanha eleitoral. Os benefícios sociais seriam uma concessão demagógica e insustentável, que estaria atingindo as contas públicas e a atividade produtiva. Passadas as eleições, seria necessário um grande “ajuste”.
Dilma combateu a tese durante a disputa pela Presidência; mas, numa reviravolta brusca, adotou-a e se dedica a ela, desde o início do segundo mandato. O recuo criou, para a oposição, o cenário ideal. Suas ideias impopulares estão sendo implementadas, mas quem sofre todo o desgaste é o governo. Parte dos conservadores flerta com o impeachment; parte, sente-se confortável com o quadro atual. A reação ao discurso de ontem segue a mesma lógica. Nenhuma concessão é bastante. Alguns dos críticos da presidente a hostilizarão tanto se ela defender a criação de comitês bolivarianos quando se aderir ao que sempre sustentaram.
- Os terraços gourmet lideram o protesto – mas o “ajuste fiscal” atinge as maiorias:
Ao comentarem, hoje, os insultos a Dilma, alguns defensores da presidente procuraram minimizar os protestos. Ressaltaram que o panelaço ficou restrito a bairros de elite e classe média. É uma verdade enganadora, como demonstram as pesquisas sobre a popularidade do governo.
O “ajuste fiscal” não atinge “todos os setores da sociedade”, ao contrário do que disse Dilma. Ele poupa escandalosamente a oligarquia financeira – que, ao contrário, beneficiou-se com três aumentos seguidos das taxas de juros. Afeta parte das empresas produtivas, com aumento da contribuição previdenciária (o que poderá gerar demissões e ou inflação). Mas recai com mais dureza sobre os pobres e a classe média, vitimados por um conjunto de medidas. Veto à correção da tabela do Imposto de Renda. Elevação das tarifas de energia, que deverá chegar a cerca de 20%, só numa primeira fase. Restrições do programa Tarifa Social, que eliminando os descontos na conta de luz que favoreciam 5 milhões de famílias. Redução do emprego, provocada pela paralisação generalizada de obras do governo federal (inclusive as do PAC).
Como o “ajuste fiscal” tornou-se uma espécie de consenso entre governo, mídia e oposição conservadora, quase não há debates sobre estas medidas. O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, anuncia-as como se liderasse uma espécie de governo paralelo. A maior parte delas sequer será submetida ao Congresso Nacional. Mas corroem dia a dia a confiança em Dilma, humilham o eleitorado que votou na presidente acreditando numa nova onda de mudanças e alimentam o esforço da oposição conservadora para ganhar as ruas. O deputado federal Orlando Silva narrou alarmado, num post recente no Facebook, a rápida difusão dos protestos de 15 de março entre os mais pobres.
- A fala de Dilma compromete as imagens e ações da esquerda pró-governo:
Nenhuma disputa política é ganha apenas com atitudes defensivas. Num cenário de forte polarização e de avanço do discurso oposicionista, o governo precisaria contar com uma base social mobilizada, disposta a disputar as ruas, capaz de oferecer à sociedade não apenas argumentos que amparassem a presidente, mas também um horizonte de mudanças.
O discurso de ontem parece ignorar esta regra básica da política. Com ele, Dilma coloca os que poderiam apoiá-la diante de um dilema. Se assumirem, com ela, a defesa do “ajuste fiscal” tendem a se desgastar tanto quanto o governo. Se insistirem na crítica ao “ajuste”, mantendo-se coerentes com o discurso que sustentaram ao longo de anos, estarão se afastando, na prática, da defesa da presidente.
Nesse sentido, a fala de ontem é um desastre não apenas com vistas ao próximo domingo. Ela cola a imagem do Palácio do Planalto, e a de seus eventuais apoiadores, a medidas impopulares e antipáticas. Ela é, também, uma tentativa de enquadramento e homogenização política. Desde que anunciado, o “ajuste fiscal”, despertou a crítica de diversos movimentos sociais normalmente identificados com o PT e os demais partidos de esquerda; e mesmo de parlamentares da base governista. Que o governo pretende agora: que silenciem e se submetam? Que abram mão do direito à divergência? Que passem a ser vistos como adversários?
- Há alternativas. Mas agora, elas dependem de uma nova reviravolta política:
Ao longo do discurso de ontem, Dilma voltou a avançar por uma vertente que explorou com sucesso para enfrentar Marina Silva, durante a campanha eleitoral – mas que agora tende a se voltar contra si mesma. Ela fez a defesa acrítica das atuais instituições políticas – como se não houvesse horizonte democrático além delas e como se pressionar os poderes da República fosse um tabu, não um direito dos cidadãos.
“Tenho certeza que [o “ajuste fiscal”] contará com a participação decisiva do Congresso Nacional, que sempre cumpriu com seu papel histórico nos momentos em que o Brasil precisou”, disse a presidente. Sua fala reflete uma renúncia. Havia e há alternativas ao “ajuste fiscal”. Implicam abrir uma nova rodada de redistribuição de riquezas, ao invés de reverter os avanços – efetivos porém limitados – dos últimos doze anos. Traduzem-se, por exemplo, numa vasta Reforma Tributária, na tributação das grandes fortunas e das operações financeiras. Enfrentarão, é claro, oposição de um Congresso ultra-conservador e comprometido até a medula em relações promíscuas com o poder econômico. Exigem ampla mobilização social e pressão sobre o Legislativo.
Enquanto rejeitar este caminho, Dilma obriga-se, de fato, a amparar-se no poder dos deputados e senadores. Mas o faz no momento em que estes estão mais desacreditados junto à opinião pública. Arrisca-se a mais impopularidade. E convida a lembrar, com certa nostalgia, do tempo em que os líderes da esquerda institucional apelavam aos movimentos sociais e diziam, do Congresso Nacional: “são trezentos picaretas com anel de doutor”…
*Por Antonio Martins/Outras Palavras