Com incentivo da Lei Rouanet, espetáculo conta com dramaturgia de Denisson Palumbo e direção de Elisa Mendes

Muralhas são fronteiras que limitam movimentos, signos de segregação, trânsitos de memórias. Ficção e ou realidade, um muro separa Brasil e Unidos Estados do Nordeste, em O Caminho dos Mascates, espetáculo musical do Coletivo DUO, escrito por Denisson Palumbo, com estreia no dia 11 de março, às 19h. A obra fica em temporada virtual até 26 de março, gratuitamente, com exibições diárias do espetáculo pelo YouTube do Coletivo DUO, com acessibilidade em libras e legendagem.

No fluxo de ser e estar nesses territórios estão os mascates – vendedores viajantes constituídos de caminhos -, que carregam em suas malas ausências, histórias e desejos. Vividos pelos atores Israel Barreto, Marcos Lopes e Saulus Castros, esses viajantes por profissão questionam suas vivências e produzem repentes a partir de dúvidas territoriais. Um quarto ator compõe o elenco, Lineu Guaraldo, que dá vida a personagens diversos que humanizam os mascates Antônio Corrente, Antônio das Velhas e Antônio Massangano, respectivamente.

Distópico, o Nordeste se fez e se reinventa. É dessa necessidade de recriar-se e reerguer-se, que Palumbo cria os Unidos Estados do Nordeste (UENE), pedaço de terra sertaneja cercado de Brasil por todos os lados, separados por uma muralha ficcional, mas que na realidade é uma ilusão que oprime, que não permite ser ancestral e deixa interrogações. Teatro do real?. Muitos já quiseram separar o Nordeste do território Brasil. Nessa impossibilidade que é o UENE, questiona-se: “Com quantos bordados se faz uma bandeira?”.

Com direção cênica de Elisa Mendes, O Caminho dos Mascates é permeado de referências coletivas do ser nordeste, de um povo imaginário que em trânsito construiu um Brasil. Palumbo traz para sua embolada musical e dramatúrgica um plebiscito que questiona ao povo se ele deseja a derrubada dessa muralha repleta de ilusões – geográficas e racionalistas, se os nós fronteiriços devem ser desatados, demolidos.

“‘O Nordeste é uma invenção, o Nordeste nunca ouve’, já cantou Belchior. A UENE é uma nação nascente, desconhecida por si mesma, que se constrói nas dúvidas. Há quem diga que as dúvidas são a única certeza absoluta. Por isso, trago tantos questionamentos: Quem é Você?”, comenta Palumbo, ao acrescentar que o texto foi escrito entre Março e Junho de 2020, quando a Covid-19 torna-se pandemia no Brasil, e tem como referência “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, “obra fundamental para entender o Brasil e reinventar o Nordeste”.

E nesse questionar, Palumbo escreve uma obra que interroga o que seria a identidade cultural contemporânea de uma nova “nordestinidade”. Nesta linha de raciocínio, Elisa Mendes diz que O Caminho dos Mascates discute sobre identidade, território e poder, e nos leva a pensar, “os Brasis que temos, a discutirmos sobre as muralhas que nos afastam, que nos segregam”, sendo a muralha “a própria lida, os impedimentos constantes para que a nossa sociedade avance”.

Nessa narrativa, os mascates “representam os espíritos inquietos, que não se dobram fácil, defendem a liberdade e a alegria como guia”. Palumbo diz: “os mascates são o que for possível”. E se for possível, “com quantas malas se faz uma viagem?”. E as possibilidades são inúmeras. Em suas malas, os mascates trazem histórias que cruzam fronteiras, com rimas risonhas e dançantes, que “trilham trechos tresloucados”, amores e dores se revelam.

É no caminho, com suas malas em punho, carregando nas costas e nos buchos dos animais, que eles trazem “sonhos em tralhas”. Cruzam passado, presente e o que a de ser o futuro. Caminhos borrados de contos reais e ficcionais – a polarização partidária, “pela família” ou pelo trânsito livre entre geografias, a valorização ancestral, o respeito ao feminino  na figura de Maria Bonita. Em seus caminhos, os Mascates encontram-se à beira de um rio de imaginação.

Urbano virtual
O Caminhos dos Mascates é um espetáculo pensado para a rua e para o trânsito do espaço urbano. Para esta temporada, gravada em encruzilhada urbana e rural, sem a fisicalidade presente do público, a câmera passa a ser o interlocutor. “Valorizamos a linguagem do teatro de rua, em que os intérpretes dialogam diretamente para o público, neste caso com as câmeras, simulando a proximidade de uma arena presencial, exploramos a dinâmica de edição a partir de diferentes ângulos e enquadramentos”, explica a diretora.

Mendes pontua que a musicalidade singular de O Caminho dos Mascates, que tem direção de Saulus Castros, ator que dá vida ao mascate Antônio Massangano, é dramaturgia na obra. Música e dramaturgia se borram. “O espetáculo é musical por si. E quando falo isso, não estou falando somente das canções da dramaturgia, mas das falas ritmadas que dão vidas as personagens, das tessituras que capturam a atenção para o que está sendo partilhado ali”, pontua a encenadora.

Castros explica que a musicalidade do espetáculo traz a pluralidade dos Nordestes. Baiões, Bois, Aboios, Sambas de roda, Maracatus, Cavalos Marinho, Frevos, Emboladas, Carimbós, Xotes, Xaxados, Serestas e tantas outras sonoridades do Brasil-Profundo. “Rítmicas pensadas em comunhão com as dinâmicas e musicalidades da própria dramaturgia, criando as percepções e mudanças de tempo-espaço, as territorialidades das personagens, as atmosferas e densidades das cenas.  A musicalidade ressalta a caminhada dos atuantes-tocadores”, descreve o diretor musical.

E ao falarmos em rítmica, o ator Israel Barreto – intérprete de Antônio Corrente, personagem com filhos espalhados em cada ponto por onde passa, “meu time de futebol” – comenta que o espetáculo traz textos embebidos de pensamentos repentistas e de referências epidérmicas dos intérpretes, que vão transformando a dramaturgia em uma “farra musicada”, que consegue explorar a verdadeira espetacularidade musical Nordestina.

Fotos: Diney Araújo

Marcos Lopes, que dá vida ao Antônio das Velhas, mascate pernambucano, torcedor fanático do time feminino do Santa Cruz, vende de tudo – de cachaça a pomada de peixe elétrico da Amazônia, fala que a assinatura melódica do espetáculo “mostra o nordeste enquanto potência, tanto na produção de conhecimento e discussão do nosso momento atual político, social, econômico, quanto nessa musicalidade que é rica, diversa, polissêmica e muito assertiva”.

Para reafirmar esse tempo-espaço, que une passado-presente-futuro, o cenário, figurinos e acessórios de cena são compostos de fragmentos terrosos de tecidos em algodão, couro e malhas, madeiras, metais e plástico. Retalhos que compõem uma visualidade que nos leva a um Nordeste distópico e em construção. Retalhos relevos e topográficos que criam uma cartografia do que pode vir a ser solo e povo nordestino.

“Trago essa paleta de cores terrosas e amarelas para dar um panorama a essa cartografia sertaneja. Um elemento muito potente da nossa cenografia são as malas, signos de memória, de lembranças. A cabeça é lugar da memória, é como se essa memória ganhasse forma e voz através dos atores. São os ecos de memórias guardadas  e ali compartilhadas”, complementa Guilherme Hunder, diretor de arte do espetáculo.

Fotos: Diney Araújo

Com o patrocínio da RV Digital e BM Logística, através da Lei de Incentivo à Cultura – Lei Rouanet, por meio da Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo – Governo Federal, este projeto conta ainda com o Ciclo de Oficinas Caminho dos Mascates, a ser realizado para instituições públicas de ensino secundário, no período de 07 a 10 de março, com oficinas de Dramaturgia Cabocla (Lineu Guaraldo), Poesia em Voz Alta (Denisson Palumbo), Jogos Teatrais (Elisa Mendes), Jogos Físicos para Cena (Israel Barreto), Corporeidade e Dramaturgia (Saulus Castro) e Palha Assada (Marcos Lopes), respectivamente.

Serviço
O quê: O Caminho dos Mascates – Coletivo DUO, com direção de Elisa Mendes
Quando: 11 a 26 de março, às 19h
Onde: Youtube do DUO – https://www.youtube.com/c/ColetivoDuo
Entrada: Gratuita