Novo livro sugere: para superar lógicas capitalistas é preciso enfrentar crença de que tudo merece crítica – mas não vale a pena engajar-se, porque nada mudará…
Quando discutimos neoliberalismo, o atual estágio do capitalismo, naturalmente nos focamos em economia e política. Mas nenhum sistema de dominação pode surgir, e muito menos permanecer e se aprofundar ao longo das décadas, sem um aparato cultural que se estenda bem além da simples propaganda.
Os sentimentos de desesperança precisam ser engendrados. Embora possam ser difundidos por técnicas propagandísticas — o “não há alternativa” de Margaret Thatcher é um exemplo essencial –, para que sejam incorporados à alma das sociedades é preciso que transitem por múltiplos canais. Para manter um sistema como o capitalismo liberal e impor as medidas de “austeridade”, inclusive em suas formas mais severas, é preciso um reforço cultural contínuo.
Um cinismo desolador — um pessimismo profundo, para o qual mesmo que as coisas estejam muito ruins não há nenhuma alternativa — mantém as sociedades paralisadas de maneira mais eficaz que qualquer força policial. O que é essa resignação se não uma aceitação passiva do status quo? Acreditar em um mundo melhor é um ato de otimismo. Requer a consciência de que tal mudança é realmente possível; de que não somos obrigados a aceitar padrões de vida degradantes, excesso de trabalho, emprego precário e uma monocultura corporizada que põe as fofocas de celebridades e o espetáculo acima da autêntica troca humana e da comunidade.
O cinismo, portanto, é a expressão cultural natural de nossa época. Ele articula-se com o fatalismo coletivo para constituir uma força desorganizadora, segundo argumenta J. D. Taylor num livro vigoroso: Negative Capitalism: Cynicism in the Neoliberal Era* [“Capitalismo negativo: o cinismo na era liberal”, em tradução livre]. Embora o cinismo possa assumir muitas formas, e funcione com frequência como uma armadura contra um mundo indiferente, Taylor conceitualiza-o como “a resistência psicológica pervertida do indivíduo moderno, que se recusa a acreditar em governos ou na mídia, mas também renuncia a fazer qualquer coisa contra a desgovernança ou a desinformação.” [pág 102] A recusa a agir não pode transformar-se em outra coisa exceto a aceitação:
“O fatalismo coletivo é uma crença em massa de que uma mudança significativa é impossível. Os indivíduos outorgam sua tomada de decisões, na expectativa de que alguém vá fazê-la em seu nome, com ou sem seu consentimento. Isso leva a uma infantilização de cidadãos, que gozam sua falta de poder convertendo-se em consumidores solitários… para os quais as compras são seu derradeiro e significativo ato de afirmação, sinalizando um novo tédio que, na falta de alternativas, leva ao fascismo.” [págs 105-106]
Os espaço e o tempo foram conquistados pelo capitalismo; e quanto mais forte o capitalismo, menos nossas vidas importam. Isso, é claro, não “acontece” simplesmente — não é um fenômeno natural, como as ondas do oceano, ao contrário do que os propagandistas gostariam de fazer crer. Trata-se, ao contrário, de um projeto em curso, um consenso do sistema financeiro global e das elites empresariais. Somos progressivamente mais consumidores que cidadãos, “empoderados” por mais escolhas de produtos, e simultaneamente com um poder declinante sobre nossas vidas.
A raiva é fútil alternativa
Compensações como o uso compulsivo do álcool e outras drogas e uma aparente cornucópia de consumo que só faz a roda do hamster girar mais rápido são substitutos fracos a comunidades saudáveis. O autor escreve:
“O trabalho contemporâneo é frenético e, em meio a ele, raramente se vê os amigos. A tela do computador é a janela pela qual um mundo sempre desperto e alerta bombardeia nossos neurônios com emails importantes, spams de Viagra, narcisismo, catástrofes contínuas e pornô faça-você-mesmo. Essa mudança ontológica no status de ser humano é uma das razões essenciais para o profundo senso de mal-estar e depressão que existe nos jovens adultos hoje. Esse modo de viver não é suficiente, e quando alguém não é mais capaz, ou escolhe não se comportar como simples consumidor, ou interagir com o mundo por meio de logotipos de publicidade ou aplicativos, a raiva e a frustração crescem. …
A vida está ficando mais difícil, empobrecida, deprimente e monótona. Isso não é inevitável, e certamente não deveria ser aceitável — mesmo que muitos continuem a ceder ao aspecto sombrio da existência cotidiana, por falta de alternativas credíveis.” [págs 15-16]
Não há nenhuma alternativa no interior do capitalismo. As rebeliões culturais são logo cooptadas, já que a lógica do enclausuramento econômico de todos os espaços leva os que se rebelam desta maneira a acabar se acomodando. Apenas a transformação econômica e política através de ações de massa decisivas é possível. Mas uma ação de massas, por sua vez, não pode ser efetiva sem objetivos sociais relevantes e tangíveis. Taylor argumenta que as responsabilidades e direitos de adultos poderiam ser definidos por “uma nova constituição e um novo contrato social impregnado de cidadania”, o que seria um caminho para a criação de uma alternativa ao capitalismo.
Pleno emprego, com jornada de trabalho reduzida para todos, poderia não apenas oferecer um padrão digno de bens e serviços para todos mas também assegurar o acesso ao trabalho. Mas ao imaginar essa ideia,Capitalismo Negativo oferece uma mistura curiosa de pensamento revolucionário e reformista. Por um lado, o livro defende um movimento político em torno do Trabalho que demanda direitos e proteções sociais ampliadas e, a certa altura, um movimento para “forçar” as Nações Unidas a impor medidas de bem-estar social de alcance global. Ao mesmo tempo, vai bem além de tais reformas básicas, ao demandar a introdução de uma Renda de Cidadania mundial, limites universais à duração da jornada de trabalho e uma punição dura às empresas que causam danos aos trabalhadores ou aos ecossistemas.
Aí, novamente, um movimento global para superar o capitalismo não pode crescer a não ser que haja objetivos tangíveis e ideias de como um mundo melhor seria — não apenas conceito teóricos e abstratos. Apesar de nunca mencionado em Capitalismo Negativo, o conceito de Leon Trotsky de “programa de transição” vem à mente aqui: objetivos e demandas que pareçam reformistas e inicialmente possam ser trabalhadas como reformas, mas são “grandes demais” para serem acomodadas pelo capitalismo e, ao fim das contas, só podem ser atingidas através da transformação para um sistema novo e diferente. A teoria aqui é: uma vez que as pessoas vejam que os objetivos razoáveis são impossíveis no interior do sistema, elas estarão preparadas para ir além do reformismo.
Por isso, deveríamos deixar nos manter abertos em relação a objetivos e táticas. Um movimento efetivo terá que apresentar claramente o que pretende, em termos facilmente compreensíveis. Como chegaremos lá? Nenhum de nós tem a resposta para isso, mas uma multiplicidade de formas de recusar-se a obedecer são necessárias. Um movimento democrático pode manter-se unido numa “guerra civil” contra o sistema financeiro neoliberal, com o foco em programas estratégicos simples, argumenta Taylor:
“O poder não pode desaparecer, mas ele é neutralizado quando se difunde entre uma massa igualitária de agentes democráticos que reconhecem a regra do coletivo, não do individualismo. O capitalismo pode ser desfeito. Isso nos levará a uma perturbação da vida social que temos e, inicialmente, a um período de conflitos sociais profundos, mas a história das sociedades humanas demonstra que as culturas não são, em essência, nem “boas” nem “ruins”, como afirmam muitos dos críticos morais e defensores do capitalismo. O certo é que as pessoas gostam mais de diálogos, amizade e generosidade do que de consumo e trabalho.” [pág 26]
Criatividade na oposição
Como vamos chegar lá? Para começar, livrando-nos do cinismo e da crença de que nada pode mudar. A criatividade é uma arma necessária para qualquer contra-ataque. Capitalismo Negativo defende o “rompimento espetacular” de pontos débeis do sistema como parte de uma desobediência de massa diante das convenções sociais. Trata-se de rupturas “com impulso tão violento quanto a pobreza forçada, a falta de assistência social e a destruição do meio ambiente” impostos pelo capitalismo.
Hackeamento anti-sistema, boicote a dívidas, criação de novos parlamentos autônomos, locais e nacionais, organização das comunidades e atos estratégicos de violência dirigida a alvos específicos — como “varredura de supermercados” e ocupações coordenadas de edifícios financeiros e governamentais — são algumas das ações sugeridas. Ao mesmo tempo, o livro propõe que a esquerda abandone o “bom-mocismo moral e a linguagem elitista”. Nenhuma lista de táticas, inclusive as relacionadas acima, pode em si mesma levar a lugar nenhum, sem que esteja acompanhada de uma noção mais ampla sobre que objetivos se deseja alcançar, uma estratégia de mais longo prazo realista e ao menos as noções gerais sobre como seria uma sociedade melhor.
Em relação ao que esperariam alguns ativistas (admito que estou entre eles), J.D. Taylor avança pouco sobre teoria — mas ele merece crédito por reconhecer suas próprias dúvidas, enquanto lida com este vasto leque de temas também na condição de ativista. Não é mais suficiente, para nós, dizer o que não queremos, nem chamar atenção para a miséria que atravessa o mundo. Precisamos ser a favor de algo. Os conceitos do autor sobre um novo contrato social, que assegure participação democrática significativa e direitos, podem chocar um leitor reformista ou revolucionário, e talvez ambos. Mas eles expressam os contornos de um mundo melhor em termos gerais — um objetivo essencial, em meio à ardua obra de tornar mais concretas certas ideias que, embora elevadas e cruciais, ainda são abstratas.
Aprender a assumir responsabilidade pelo futuro e a compartilhar as habilidades, a formação e a compaixão por criar a cidadania democrática que um mundo melhor requer são essenciais — especialmente para os mais jovens — para alcançar, um dia, tal objetivo. Não há atalhos.
“O otimismo não pode significar a construção coletiva de mentiras convenientes, para tornar as pessoas infelizes mais capazes de enfrentar seus infortúnios. Ao invés disso, ele articula a criatividade necessária para ir além dos meios hoje existentes e envolver-se num patamar de atividade novo e desconhecido. O otimismo é criativo… O pessimismo é reacionário… Sua incapacidade de dar conta da natureza violenta do desejo, tanto cultural quanto biológico, o conduz à submissão cínica. O neoliberalismo é um sistema poderoso deste tipo.” [pág. 87].
Este sistema poderoso não será vencido até que deixemos de aceitá-lo:
“A História não será criada pelos nihilistas, mas por gente determinada a ir além de seus contemporâneos nihilistas” [página 88]
O livro de J.D. Taylor não oferece um roteiro — o que é bom, já que se trata de algo impossível. Ao contrário, ele nos convida a prestar mais atenção às dimensões culturais do domínio do mundo pelo neoliberalismo. Ele presta um grande serviço, ao lembra-nos que um sistema muito abrangente como o capitalismo moderno consolida a si próprio por meio de um vasto espectro de mecanismos institucionais — e não pode ser combatido sem que compreendamos em que grau ainda absorvemos suas expressões culturais.
*Por Pete Dolack | Tradução: Gabriela Leite | Imagem:Eric Drooker/Outras Palavras