Projeto de escola nascido com a Revolução Francesa está esgotado. Mas como retomar, no século 21, ideias de igualdade, democracia e participação coletiva no futuro comum?
Por Katya Braghini**
Talvez estejamos assistindo à morte dos princípios da democracia liberal que são o fundamento de um ideário de escola, com mais de 200 anos, e que nos move como sujeitos que pensam o futuro de novas gerações. Foi essa a sensação que tive ao término da linda apresentação da professora Carlota Boto (da Faculdade de Educação da USP) acontecida numa tarde de outubro, na PUC-SP por conta do I Seminário de História da Educação do programa de pós-graduação em Educação: História, Política, Sociedade.
A professora fez explanação sobre os princípios democráticos da escola pública, laica, gratuita pensados por Condorcet durante a Revolução Francesa. A narrativa mostrava os encaminhamentos do pensador e revolucionário a respeito de como deveria ser a escola francesa e, de como esses princípios, foram sendo estabelecidos, paulatinamente, ao longo do século 19 naquele país. Implicitamente, na fala, percebíamos a montagem dessa grande tecnologia, “a escola”, uma incrível invenção que foi amparada por princípios liberais, democráticos, e mesmo diante de suas dubiedades e contradições históricas, fracassos até, se estabeleceu como uma necessidade, quase que se naturalizou, como instituição que forma e conforma pessoas dentro de padrões de racionalização e que, sendo assim, ou ainda assim, pensa e projeta futuros.
Porque, está intrínseco ao ideário projetado, que a escola, como ambiência de formação é um espaço que, em termos físicos, estéticos, morais e psicológicos, nasceu com uma certa concepção de história, aquela que se funda com o poder de organização de grandes coletivos, “coletivos singulares”, em nome de um futuro melhor, um mundo melhor, utopias de “progresso”, “desenvolvimento”, “socialismo” e “fortuna”. E a ideia de equidade está lá desde a gênese, como parâmetro desse processo histórico. E assim, com percalços, erros, disputas curriculares, brigas políticas, lutas sociais, contradições e quedas, nos lançamos por mais de dois séculos, repassando pela própria escola, uma tradição humanista: a defesa da escola pública, laica, gratuita que gerasse grandes coletivos esclarecidos. Forjar sujeitos cuja autonomia significasse a possibilidade de criação de discursos próprios, gerando o sentido de responsabilização diante do outro: ética do saber fazer, saber pensar, como marco de cidadania. É evidente que todas essas palavras ganham e perdem significações ao longo do tempo, mas aqui, estou falando de princípios. Pois afinal, até sem pensar muito, professores repetem essa ideia “em defesa de uma escola laica, pública, gratuita” uns para os outros e deles para o mundo.
Discutimos o desvanecer de princípios democráticos diante da força intervencionista do neoliberalismo na formulação de políticas públicas; ao mesmo tempo, vemos os movimentos sociais e educacionais combativos diante do rápido processo de desativação desses mesmos princípios. E o ataque à escola é o sinal de morte dessa longa tradição humanista que nos pautou como educadores nesse processo: igualdade, universalidade, laicidade, autonomia política, liberdades civis, cidadania.
Vemos a intervenção de instituições internacionais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a agressiva investida de interesses empresarias, lobby de escolas particulares atuando decisivamente na configuração das reformas educacionais. Nesses discursos, a Educação ainda é apontada como “uma prioridade”. Mas, é necessário compreender o motivo e o sentido dessa ideia. Prioridade para quê? Se atualmente, o léxico empresarial se fixa aos discursos produzidos sobre a Educação, de forma que, palavras como “eficiência”, “flexibilização”, “enfoque setorial”, “empreendedorismo”, estimulam a entrada e manutenção de uma administração gerencial, concorrencial, no plano geral e, particularmente, incitam a fixação do setor privado nos interesses da escola pública?
A crise social gerada, em plano mundial, especialmente em relação ao trabalho, revela, cada vez mais, as contradições, injustiças e limites dessa estrutura hegemônica. É necessário, portanto, discutir a posição da Educação diante dos contornos historicamente dados na atualidade ao que Dardot e Laval (2016) chamam de “nova racionalidade ademocrática”, pois a corrosão dos direitos sociais do cidadão diz respeito aos fundamentos do que é a própria “cidadania” e como tal, passamos a uma nova fase da história, quando a principal invenção coletiva foi criar a ideia de “sujeito como empresa de si”. Lá estamos nós descartando a possibilidade de pensar em “outros”.
A educação, pensando a promoção da democracia, tem relação direta com a manutenção de espaços que impulsionam a multiplicação de contatos sociais e a ampliação de experiências acontecidas no entrelaçamento das várias atividades da vida conjunta e mutuamente comunicada. Por isso, a escola se mantém como território de transformação social; lugar com grande potencial de reflexão crítica da realidade. Mas, em tempos neoliberais, reside sobre essa instituição uma nova contradição: porque nela recai a ideia de conformação dos sujeitos aos padrões dessa racionalidade, dita “empresarial”; mas, é também nela que vemos mobilizações sociais, que contradizem o plano de sua adequação aos critérios da produtividade e da rentabilidade. Matar este contra-discurso que reside no seio da escola é a artimanha diabólica de um Estado que passa a ser ente horizontal na cumplicidade com os interesses privados sobre a educação. Chamar este Estado de “poder público” virou uma mentira retórica. Ele está longe de nós, fechado em palácios com banquetes, enquanto clamamos pela manutenção da escola democrática.
Atualmente, pela confusão criada entre as esferas política e econômica e a suspensão das fronteiras entre a esfera pública e a esfera privada, a educação manifesta-se como ação legitimadora de uma sociedade fortemente excludente. A compreensão dos processos políticos, sociais, econômicos, psicofísicos que fomentam essas reformulações sobre a pauta educacional, levando-a para este caminho antidemocrático, marca a importância de análises sobre a relação entre democracia e educação mediante o planejamento e a organização de um Estado que vê o “povo” como inimigo. Bresser Pereira está falando disso em um post que tem circulado na internet: de como o neoliberalismo, na articulação entre estado e interesses privados fomenta e faz funcionar uma “luta de classes inversa”. Ou seja, segundo sua análise, não estamos mais no momento de ver o povo clamando por seus benefícios diante de um poder que resguarda e protege os interesses do capital monopolista. Estamos vivendo uma batalha de ódio dos chamados “ricos rentistas” que não necessitam de comprometimento com a nação, mas que na fluidez mundial de suas riquezas, lutam ferozmente contra os limites estabelecidos pelo estado de bem estar social. Não somos nós, os comuns, que temos força de contradição. Ao contrário, eles têm força para o nosso aniquilamento, acabando com a ideia de direito público. Essa é a natureza da PEC 241.
Pensar os processos históricos de constituição de um contra discurso, ou seja, a ação prática do povo, que por meio do seu ativismo, manifestações, organizações de grupos, sindicatos e pensamento social apontaram outros caminhos e significados para a Educação. A professora Circe Bittencourt (PUC-SP), que tem sido uma ativista destacada contra este estado de coisas — porque percorre, de corpo presente, todo o país, fazendo política militante — perguntou durante a sessão: E nós, como pensadores da educação, como intelectuais, professores e alunos, o que fazer como desafio? Nós vimos o debate fluir para a história da educação, nos fazendo lembrar que, algumas vezes, intelectuais são “convocados” a tomar posição e a se lançar em manifestos crassos, formular um pensamento e o documentá-lo, agindo politicamente com a ideia de consenso para marcar uma posição. Não da forma “internética”, momento quando o excesso de “manifestos” vendem no atacado ideias múltiplas de frentes sem foco. Mas, talvez de outra forma, que eu mesma não saberia qual ou como?
Lembrei-me de que “a história não faz nada” senão por meio dos homens. Senti tristeza em constatar que talvez estejamos vendo o final de uma era para a história da escola. Lembramos ali, de que no Brasil, nunca conseguimos implantar essa escola de humanismo revolucionário. E hoje, diante de um momento de quase sonhos possíveis, andando lentamente rumo a uma educação pública de qualidade, laica, diversa, fomos lançados à morte de um “futuro melhor”. Paolo Bianchini, professor da Universidade de Torino, falava disso em outra palestra também: Qual professor vai poder dizer com honestidade que rumamos para um “futuro melhor”? Porque os processos históricos não estão mostrando isso, pelo contrário. Matamos aqui uma das funções históricas da escola e um dos sentimentos mais vigorosos que perpassam a longa história dos professores em relação aos seus alunos. Eu me fiz essa pergunta e a pronunciei: por que optamos em dar fim a uma invenção tão poderosa com princípios tão bonitos? Abrimos mão até mesmo dos princípios!
Julgo que um manifesto vale menos pelo papel, e mais, pela ação de sujeitos, seres de carne e osso, que se encontram cara a cara, ao vivo e em cores e ali registram o seu nome dizendo: Da forma como é, sou contra. Tem algo nessa história toda que está anunciando claramente a nossa incompetência para agir.
**Katya Braghini é Doutora em Educação, professora e pesquisadora do PEPG em Educação: História, Política,Sociedade (PUC-SP), historiadora da educação.