Conta-se os mortos, contam-se os vivos, e pronto. Essa porcaria de doença! Até os que não a apanham parecem trazê-la no coração.
Albert Camus. A peste.
Não aguento mais ficar em casa. Já escrevi e falei isso milhões de vezes desde o começo da quarentena.
Todas as tarefas que eu tinha como obrigação antes disso tudo, e que raramente reclamava de fazer, tornaram-se fardos pesados: lavar a louça, arrumar meu quarto, fazer lição, assistir aula, fazer qualquer tipo de exercício físico e a lista se estende. Não consigo parar de procrastinar, não acho jeito de colocar minha cabeça no lugar, não sei como vou estar no dia seguinte e, sempre que ele chega, falo que serei mais produtiva no próximo, quando nunca sou.Fico presa nesse ciclo, com pequenas variáveis, e tudo desmorona. Me afasto dos meus amigos, da minha família, minha saúde mental se deteriora e meu desempenho escolar cai mais rapidamente do que o coronavírus se espalha.
Enquanto isso, contudo, é esperado de mim puro sucesso acadêmico. A escola manda quatro, cinco trabalhos por semana, seis aulas de vinte a trinta minutos de duração cada e eventuais verificações de aprendizagem desse conteúdo – não dado, mas cuspido nas caras dos alunos, de uma maneira tão volumosa que cabe a nós apenas nos afogarmos nele.
Além, claro, da ansiedade de não saber quando a quarentena vai acabar. Eu nunca poderia imaginar o quão difícil é viver sem saber como será a próxima semana, mês ou até ano, se nada se resolver. Passo horas conversando com meus amigos por ligação e mensagem, ponderando todo tipo de idiotice que faremos na próxima vez que nos virmos, porque acredito veementemente que, caso não o faça, vou enlouquecer. A incerteza dessa data mágica – que, apesar de ter consciência de que será um processo gradual, não consigo parar de fantasiar sobre – faz da minha mente uma refeição e vai devorando-a de pedaço em pedaço, enquanto me entrego ao desespero.
Contudo, acho que o que mais temo com a possível aproximação do fim desse inferno são as consequências. Ignorando os aspectos políticos e econômicos, que já podem ser previstos, não fazemos ideia de como nossas cabeças sairão do isolamento. Eu, poucos dias atrás, me peguei atravessando a rua se visse pessoas andando na minha direção, na mesma calçada – da mesma maneira que as vejo evitando cruzar caminho comigo e com qualquer outro, estando esse de máscara ou não.
Nosso sentimento de comunidade, se já não era fraco, agora é praticamente inexistente. O brasileiro é, típica e imperdoavelmente, individualista: cuidamos apenas do que é nosso, nos preocupamos apenas com nosso próprio nariz e, sempre que possível, gostamos de impor nossa moral em todo e qualquer um que discorde. Há vídeos na internet de gente sendo chutada para fora de ônibus por não estar de máscara, negros são assassinados de maneira escancarada pela instituição cujo único objetivo é a proteção dos cidadãos e pessoas teimam em aglomerarem-se como protesto à quarentena, porque aparentemente suas visões políticas transcendem as centenas de mortes por coronavírus que são documentadas diariamente. Se estamos assim agora, como será o depois? De que jeito podemos querer um retorno à “normalidade” se não há cooperação nem no momento de crise?
Mas, o que será a normalidade? Existirá algum conceito, nem que análogo a esse, dentro dos próximos cinco, dez anos? Acho que não. Temo que não.
Invariavelmente, enquanto nos encontramos no centro do furacão, não adianta aderir ao pensamento pessimista e catastrófico. A catástrofe já está aqui, entre nós, não só toda vez que colocamos o pé para fora de casa, como também quando abrimos portais de notícias para tentar o máximo possível não nos permitir a alienação.
E esse é um mal mascarado que vem me seduzindo lentamente. É tentador ceder ao isolamento total, focar completamente em si mesmo como indivíduo e, assim, ignorar o contexto no qual o mundo se apresenta. As pessoas que alegam acreditarem que a quarentena pode ser uma oportunidade de relaxamento, produtividade e autocuidado já passaram, há muito, da alienação. Sim, suas vidas se tornaram muito mais fáceis, mas a custo de quê? Em que elas contribuem para o “continuar” da sociedade, se recusando a participar dela? E pior, como conseguem dormir à noite tendo consciência disso?
Para ser honesta, nem tentando “participar” de maneira positiva das questões sociais atuais consigo dormir tranquila. E não falo isso, de jeito nenhum, para soar altruísta ou empática, pois me sinto o exato oposto: egoísta. Ao mesmo tempo em que carrego pura gratidão por todos os recursos aos quais tenho acesso, não usufruo deles do jeito que melhor poderia e, por isso, não sai de minha cabeça a culpa. Culpa por não estudar direito durante o ensino à distância enquanto milhares de estudantes não têm aula desde março, culpa por não poder fazer nada para ajudar quem mais precisa a não ser assinar petições na internet; culpa por, essencialmente, ficar no conforto da minha casa, tendo como maior problema tentar estudar alguma coisa e ativamente não o fazer, mesmo tendo todo o tempo do mundo.
E a pior – ou melhor, dependendo da perspectiva – parte dessa quarentena é o tempo. Ficar sozinha, para mim, sempre foi uma terapia de relaxamento; agora, é torturante. Tenho uma quantidade excessiva e insuportável de tempo comigo mesma que, mesmo que eu tente evitar, está me enlouquecendo. Fico assistindo filmes, séries, lendo, mas tudo sempre acaba numa reflexão que parece chegar a lugar nenhum. Acabo ficando revoltada, porque com dezesseis anos, eu deveria estar fazendo todo tipo de besteira por aí! Ter uma obrigação moral de isolamento é excruciante posto que, mesmo que queira muito, não posso sair buscando festas nem frequentado casas de amigos, já que me foi dada a informação necessária para entender que isso implicaria em muito desastre e que é exatamente essa atitude individualista que está atrasando tanto o “achatamento da curva” de contaminação.
Se tem uma coisa que reconheço ser – mas desprezo – é hipócrita. Não comprometeria o bem da comunidade pela vontade de sair, vontade que todos compartilham comigo, mas muitos abdicam para que tudo isso acabe logo; não há nada que me dê o direito de satisfazer um desejo que está sendo sacrificado, também, por tantos outros. Por isso e por muitas outras coisas, quero deixar para as gerações futuras a seguinte invocação: olhem para além do seu próprio umbigo. Porque senão, ao invés de salvarmos um ao outro, nós apenas vamos, um a um, à ruína.
Por Sofia Moreira – 16 anos