Ao som da música Rosa de Hiroshima, resolvi utilizar meu restinho de manhã dominical para escrever. Creio que a escrita, de alguma forma, nos eterniza, deixa uma marca no mundo e em nós mesmxs. Escrevo para você que, talvez, espera meus textos para se deparar com leituras outras de mundo a partir de uma pessoa que experimentou em sua carne as marcas da exclusão perversa da sociedade brasileira desde o seio que, outrora, era familiar até os ambientes eclesiásticos que diziam agir em nome de um Deus que é todo Amor. Uma falácia, a meu ver, que exclui quem ousa ser. E, em meu caso, em quem ousa dizer que é homossexual, uma de minhas dimensões identitárias.

Desde a infância, fui me identificando com a escola e com a igreja, dois ambientes que sempre me foram, na maioria das vezes, agradáveis. Entretanto, foram nesses locais e no seio familiar que fui percebendo, aos poucos, que as pessoas não amam incondicionalmente. Elas amam sempre impondo condições. Essas condições tem a ver com os “valores” sociais dominantes. Se você não se adequa ao script hegemônico, prepare-se para passar por processos sutis ou escancarados de exclusão.

Minha primeira grande experiência de exclusão se deu ainda jovem, após formação em psicologia e ciências sociais, ao ser expulso da casa onde fui criado pelo meu pai e mãe de criação (a chamava de tia). Hoje, “penso nas feridas como rosas cálidas”. Talvez a ferida me acompanhe por toda a vida. Afinal, rosas não são feitas sem espinhos! Foi uma marca cortante que me permitiu experimentar-me, pois não mais desejava ser como a maioria que continuava no armário, fingindo ser o que não é. Houve um tempo em minha vida que fiz parte de um mosteiro e foi lá que experimentei a hipocrisia da igreja e seus efeitos perversos. Lá comecei a lidar comigo mesmo, ou melhor, deparar-me com o que sou através do espelho complexo que eram meus irmãos, majoritariamente gays e não assumidos, mas que faziam, boa parte, as artimanhas sexuais para experimentarem o prazer de serem… Lá, comecei a entender o script social.

Durante um ano de estadia fui, aos poucos, refletindo: Quem sou? Quem é esse estranho de mim mesmo que em mim habita? Quero esta vida pra mim? Um status de padre, envolvido pela batina, e sem poder falar a maior verdade de minha vida? A verdade de mim mesmo? Aos poucos, através de uma psicanalista que nos atendia, pude elaborar a passagem. Após um ano de psicoterapia, falei sobre minha homossexualidade e, qual não foi sua surpresa, a mesma declamou: mas, Adailton, nem parece!!! Hoje, sei que os profissionais psi não devem ter essas reações, mas foi a reação possível a ela naquele momento. O seu olhar, atravessado pela heteronormatividade, fez com que ela se espantasse ao não ver os supostos traços da feminilidade em mim, algo odiado por muitos homens (dito de outra forma: pela sociedade patriarcal) que receiam ser chamados de viados, bichas e outros significantes repletos de ódio (que, por sinal, hoje, são por muitos de nós ressignificados).

Pois bem, foi no mosteiro, seio católico por excelência, incubador de vocações, que deparei-me com as verdades secretas…  Foi também pela analista anteriormente citada que tive acesso ao livro a face mutante do sacerdócio (Livro, por sinal, que deve ser lido por muitos, em especial pela comunidade LGBT católica! Somos milhões no mundo! Unamo-nos!). Este livro foi um divisor de águas para mim. Pude reconhecer que milhares e milhares de meninos e meninas homossexuais de tradição católica foram historicamente e ainda são impulsionados pela cultura cristã homofóbica a se considerarem vocacionados, pois qual lugar havia para eles na estrutura heteronormativa de casamento cristão? Os mosteiros, conventos e outras agremiações sempre foram os espaços mais seguros para nós, LGBTS. Lá, estávamos livres do rigor do casamento heterossexual e das falas sociais. Talvez, penso eu agora, a regra do celibato responda ao desejo, provavelmente inconsciente, de não forçar os consagrados à vida sexual hegemônica…

Como a vida dá voltas (e a minha muito mais), lá estava eu a fugir de mim mesmo (no mosteiro), mas, em verdade, estava indo em minha direção. O saber não sabido, o inconsciente pulsante me movia para além das estruturas dominantes… Enfim, após dois anos, saí do mosteiro e retornei pra paróquia de onde nunca saí, visto que era um dos terrenos de maior afetividade existencial. O encontro com as ciências sociais, psicologia e análise pessoal fez com que eu me alargasse, me experimentasse, questionasse e me reinventasse. E assim se fez, não mais querendo viver na mentira, sem saber, fui deixando rastros na família e entre os amigos e amigas de minha ainda escondida homossexualidade. Fui me empoderando (que dor e que frescor, não sem grande pavor…).

Entretanto, refletia: será que me amam? Se me amarem, me aceitarão como sou, pensava. Se não, serei excluído. (Hoje, muito mais empoderado, posso até mandar muitos tomarem no cú. Entretanto, isso não é mais ofensa para mim. Entretanto, como para muitos ainda é, a gente usa para contra-atacar! risos malévolos ao som da canção…) Mas, no mais íntimo, já sabia que meu pai racista, preconceituoso e homofóbico (fruto de um perverso contexto sócio histórico e religioso) seria o primeiro a me limar de sua história e casa. Apesar disto, já me percebia mais adulto, livre e com dinheiro (que, por sinal, é um grande instrumento de enfrentamento de muitas opressões nesta sociedade hipócrita). Ao ser expulso de casa, em meio a lágrimas e dores, me veio uma sentença: a partir de hoje serás adulto e capaz de dar conta de sua existência com o suor de seu rosto!!! Ide! Vai, Moisés, avante! Liberta o teu povo! Pontuo aqui que meu nome no mosteiro era Moisés… aquele que cruzou o mar vermelho ( de sangue, para nós, LGBTS) e que fez atravessar um povo inteiro! Não terás mais a sua antiga família como suporte… Era como se me dissesse: foi bom enquanto durou…

A expulsão de casa me fortaleceu pois, sabia eu, que outros espaços de afetividade também fariam o mesmo. Anos depois, já no ministério de música que fazia parte, fui também convidado a retirar-me. Muitos irmãos e irmãs de fora não aguentavam ver os meus posicionamentos nas redes sociais perante toda forma de opressão, mas, principalmente, em relação às homoafetividades. Alguns até diziam: “mas como pode Dadau ser tão ungido e ser gay”? A confusão mental se manifestava nas pessoas menos alienadas! Mal sabiam elxs, talvez, que eu apenas falava o que a maioria de suas lideranças eram… A verdade que em mim habitava me conectava com o divino. Inúmeros eram os casos de padres, líderes, freiras, pregadores, casados, jovens, músicos, dançarinos homossexuais. O silêncio imperava e isso não acontece apenas na igreja católica, mas em diversas igrejas que fingem não saber, negam o saber sabido. Entretanto, acredito eu, os escândalos sexuais aí estão e se tornarão cada vez maiores por causa das novas tecnologias e de um maior empoderamento social.

Após alguns anos, aqui estou eu a (re)escrever. A possibilitar que outrxs sujeitxs possam ler a vida de uma outra forma, questionando tudo aquilo que nos impede de sermos mais verdadeiros e humanos. Escrevo, meus caros, para que outras rosas desabrochem, mas com cor e perfume, muito diferente da Rosa de Hiroshima…