Com 136 anos de tradição, o Bembé do Mercado reafirma em Santo Amaro a força sagrada e política do Candomblé no espaço público

No coração do Recôncavo Baiano, uma festa de axé, memória e afirmação negra se repete há mais de um século. Realizado anualmente em maio, o Bembé do Mercado transforma a feira de Santo Amaro em um terreiro a céu aberto, onde orixás, folhas, atabaques e comidas rituais tomam o espaço e convocam o passado a caminhar junto com os vivos. Muito mais do que uma celebração religiosa, o Bembé é também um ato de resistência e reinvenção da liberdade no Brasil pós-abolição. Este ano, o Bembé já começou. Desde o dia 10 de maio, o Mercado vem sendo transformado gradualmente, preparando o espaço para os festejos religiosos que têm início amanhã, 13 de maio, com a tradicional alvorada às 6h da manhã.

Conhecido também como “Treze de Maio”, o Bembé teve sua primeira edição em 1889, no rastro imediato da assinatura da Lei Áurea. Em um país que formalizou a abolição sem garantir reparação, dignidade ou cidadania ao povo negro, o Candomblé, ali, não apenas sobreviveu: ocupou a rua e inscreveu um novo marco de liberdade negra. A festa se tornou um “Candomblé territorializado no espaço do mercado”, como define a oralidade da cidade, desafiando as margens que sempre tentaram empurrar os terreiros para fora do mapa visível da cidade.

A cada edição, o povo-de-santo sai de seus terreiros e caminha até o mercado municipal, onde a praça se transforma em encruzilhada: espaço de passagem, memória e poder. O Padê para Exu, orixá que abre caminhos, é ofertado logo no início da celebração, abrindo as veredas entre mundos e tempos. Os artefatos presentes, quartinhas, comidas, folhas, ferramentas dos orixás, são mais que objetos: são corpos sagrados que carregam axé, força vital que transcende o visível e convoca o encantado.
A ancestralidade é pilar central do Bembé.

Antes mesmo das decisões sobre a festa serem tomadas, os babalorixás e ialorixás do passado são invocados em jogo divinatório. É com eles, os finados líderes espirituais que já conduziram o ritual, que os preparativos são compartilhados. A festa se faz com os vivos e os mortos, porque, como ensina a filosofia negro-africana, “a morte está dentro da vida”. Assim, os ancestrais não são apenas lembrados, eles participam, orientam, protegem.

A devoção a Iemanjá, Rainha do Mar, se mantém como eixo de união. A ela, que representa liberdade e sustento através das águas, são oferecidas flores e canções em meio ao canto dos atabaques. Em sua força, o Bembé ecoa a fé que resistiu à escravidão, às perseguições religiosas e à violência estrutural do Estado.

Mais do que um evento litúrgico, o Bembé do Mercado é um corpo político. Ele recusa o apagamento e inscreve a presença negra como fundamento da cidade. Ao fazer da feira um terreiro, o Candomblé reafirma seu direito à rua, à fé e à história. Nas oferendas e nas danças, na folha e na fala, pulsa um Brasil que se nega a esquecer os que caminharam antes e a potência que brota do axé coletivo. Em Santo Amaro, o Bembé é feitiço e futuro, encruzilhada viva entre o que foi e o que ainda virá.