A negra e bela Bahia, território africano, de tanta gente e raças, credos e costumes, resistência e ‘unimultiplicidades’, possui um grande e sofisticado vilão: o racismo! A constatação é feita por Elias Sampaio, secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial, em entrevista exclusiva ao Bahia na Lupa. O gestor de políticas de combate ao racismo e à intolerância religiosa em terras baianas identifica que o Brasil não discute, mas que existe uma real segregação espacial e que a ideologia racista se esconde e confunde não só a cabeça dos brancos, mas também de negros. Sampaio listou ainda o conjunto de ações e políticas públicas para o setor que têm, nos últimos sete anos, alcançado avanços significativos na igualdade racial do estado e falou do conflito entre a Marinha do Brasil e os quilombolas da comunidade Rio dos Macacos.

Elias Sampaio, secretário de Promoção da Igualdade Racial da Bahia, em seu gabinete | Foto: Cadu Freitas/BnL

Elias Sampaio, secretário de Promoção da Igualdade Racial da Bahia, em seu gabinete | Foto: Cadu Freitas/BnL

Bahia na Lupa: Na gestão das políticas de promoção da igualdade, aqui na Bahia, quem é o principal vilão: o racismo ou a falta de vontade política?

Elias Sampaio: Nosso maior problema é o racismo, de todos os lados! Principalmente, pelo que ele historicamente construiu. Temos consequências do racismo que já está travestido de outra coisa, você olha e não identifica, mas se for descascar um pouquinho vai ver que é o racismo. O racismo é algo complexo, o problema é que os efeitos negativos do racismo não se dão apenas na cabeça dos brancos, mas na cabeça dos negros também. E não estou dizendo com isso – para os mais apressados não quererem me acusar -, que os negros são tão racistas quanto os brancos. Do ponto de vista do que eu compreendo ser racismo, enquanto ideologia, há uma impossibilidade teórica de o negro ser racista. Ele pode ser um bocado de coisa: preconceituoso, discriminador, etnicista, etc., mas racista, como eu entendo, não pode!

Por quê?

Nunca tivemos no Brasil a possibilidade de exercer uma hegemonia política, econômica e cultural para sermos racistas. A verdade é essa. Porque o racismo tem relação com isso, a capacidade que um grupo qualquer tem de fazer com que, hegemonicamente, outros grupos se submetam aos seus mecanismos. Estou dizendo que o racismo cria problemas na cabeça dos brancos, mas também dos negros, em vários vieses, e isto nos complica um pouco. Nosso principal problema é esse. O racismo é capaz de fazer que algumas pessoas simplesmente não enxerguem o que deve ser feito. Tem gente que não consegue enxergar esse racismo histórico. Passamos anos dizendo que precisávamos de políticas de cotas nas universidades. Depois de anos discutindo isso, temos unanimidade no Supremo Tribunal Federal [favorável às cotas]. Saímos do zero para a unanimidade. O que aconteceu de uma coisa para a outra? Um processo de compreensão e aprofundamento, e este é o nosso papel.

A Sepromi apoia ações como aquelas desempenhadas pelo Conselho Quilombola da Bahia| Foto: Cadu Freitas/BnL

A Sepromi apoia ações como aquelas desempenhadas pelo Conselho Quilombola da Bahia| Foto: Cadu Freitas/BnL

Hoje, é possível dizer que há avanços na igualdade racial aqui na Bahia?

Avanço nas igualdades raciais é mais complexo do que avanço nas políticas. Pois esse tipo de política tem um tempo de maturação de médio e longo prazo. Aí teríamos que fazer uma avaliação muito profunda em todos os indicadores que mostram a questão das desigualdades. Se você me perguntar se as iniciativas, as ações e as políticas em prol da igualdade racial têm avançado, eu diria que tem avançado muito!

É possível, então, identificar esse avanço?

Na verdade, nos últimos 12 anos no Brasil e nos últimos sete anos na Bahia, nunca houve avanços semelhantes na história do país. A criação da própria Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), em 2007, é um marco. Já havia a Secretaria municipal da Reparação, já havia a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), já havia a Fundação Cultural Palmares, que é a mais antiga de todas. Os principais projetos da Secretaria acabam também estruturando um conjunto de arranjos institucionais em prol da igualdade racial: a campanha e ações do Novembro Negro é uma referência. É o único estado do Brasil que institucionalmente se tem no mês de novembro uma campanha de massa sobre o legado de Zumbi, o Mês da Consciência Negra.

Há outros marcos?

Além disso, lá na primeira gestão do governo Wagner tem a criação do Grupo Intersetoriais de Quilombos, o combate ao racismo e sexismo institucional, as ações institucionais para outras áreas de governo, o incentivo a Lei 10.639, o Comitê de Saúde da População Negra… O governo Wagner, no primeiro ano, foi estruturando esse conjunto de arranjos para dar conta disso que chamamos de política de promoção da igualdade racial e combate ao racismo. Quando chega em 2011, a gente assume uma Secretaria onde os grandes desenhos já estavam prontos.

Implantação da Rede de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa | Foto: Sepromi

Implantação da Rede de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa | Foto: GovBA

E depois?

Conseguimos a criação da Rede de Combate ao Racismo e a Intolerância Religiosa, a qual começo a fazer o processo de implantação; o Centro de Combate ao Racismo Nelson Mandela, nós inauguramos… Tudo isso a partir de um processo de trabalho exitoso, pois vem de um conjunto de iniciativas desde a primeira gestão, que foi do deputado federal Luiz Alberto (PT/BA), e da segunda gestão, da atual ministra da Seppir, Luiza Bairros. Então, do ponto de vista de política de promoção da igualdade racial, não conheço no Brasil outro estado que tenha os arranjos institucionais que a gente tem.

E o panorama de ações de momento?

Estamos em discussão de duas coisas importantíssimas como legado que é o Estatuto da Igualdade Racial, que o governador disse aos parlamentares na abertura dos trabalhos deste ano na Assembleia Legislativa: “Estou encaminhado”. Isto é uma demanda antiga do movimento negro.

O Estatuto deve ser aprovado, pois o governo tem maioria no Legislativo. Mas, e a efetivação dele?

Boa parte do que contém o Estatuto já está presente nas políticas que temos implantado. O Estatuto é de fato uma peça que tem que consolidar algumas coisas e incluir algumas coisas novas. Uma coisa que não conseguimos fazer da forma como o movimento negro demanda há muito tempo é criar um Fundo de Promoção da Igualdade Racial. Mas a nossa proposta é criar um Sistema de Promoção da Igualdade Racial, onde a gente tente – com o perdão da redundância – sistematizar o conjunto de recursos que já temos consignados dos diversos orçamentos. Nesse sistema, iremos visualizar o conjunto de recursos disponíveis para isso e que muitas vezes se encontram pulverizados.

O Estatuto da Igualdade Racial está com o governador e deverá seguir para tramitação na Assembleia Legislativa | Foto: Mateus Pereira/GovBA

O Estatuto da Igualdade Racial está com o governador e deverá seguir para tramitação na Assembleia Legislativa | Foto: Mateus Pereira/GovBA

E a segunda coisa de “extrema importância”?

É a implementação, em curso, do programa Juventude Viva. O maior problema social que temos hoje no campo racial na Bahia é a violência e mortalidade contra a juventude negra. O projeto vai qualificar a discussão sobre segurança pública a partir do Pacto pela Vida. O Juventude Viva não será subordinado ao Pacto pela Vida, mas vai ter que dialogar, pois é a política de segurança que nós temos.

O programa discute a espetacularização do extermínio da juventude negra por parte da mídia?

O Juventude trata isso, o Estatuto trata isso e dentro do governo temos feito este debate na Secretaria de Segurança Pública e outros órgãos. Há um debate duro sobre isso.

Há caminhos para solucionar?

Há uma portaria do antigo delegado Geral da Polícia Civil que impedia isso no nível das delegacias. Mas, nosso problema são esses programas sensacionalistas da vida! O Ministério Público já está envolvido nisso. Uma das discussões era “o governo retirar as verbas de publicidades desses veículos”, mas aí entramos numa outra discussão muito mais complexa. Será que isso resolveria mesmo? Está em discussão e em disputa dentro do governo, pois há posições diferentes. O “Baralho do Crime”, por exemplo, existe uma posição dentro da SSP, que a gente ainda não conseguiu chegar num consenso favorável a nossa proposição (que é a retirada desse baralho), pois, segundo eles, quem está ali são pessoas já decididas como criminosas, definidas pelo MP e pela Justiça, e aquilo tem um “retorno positivo”, pois conseguem encontrar os caras [criminosos]. Esse é um debate real.

Vídeo mostra números de homicídios da juventude negra 

É possível equacionar o dualismo de a Bahia ter maioria negra e muita desigualdade racial?

Eu acredito que precisamos identificar o que é essa maioria negra. Não tenho dúvida, temos que qualificar que maioria negra é essa. Quando a gente chama de maioria negra, estamos falando de quem? Estamos falando das pessoas que têm a pele… Vou falar como popularmente já se convencionou: estamos falando dos pretos e pardos? Se for isso, sim, a Bahia tem a maioria negra. Essa conta tem que ser para tudo, não pode ser apenas uma conta do denominador que não vai pro numerador. Não podemos dizer que Salvador tem 80% de negros e, depois, quando vamos olhar os espaços de poder, de referência, vermos: “mas aquele cara não é negro”. Porque ele não é negro? Ou porque não participa de um grupo ou de uma tribo, ou porque não possui um discurso que seja legitimado com aquelas pessoas que definem o que é negro e o que não é! O cara está no denominador, mas não pode ir pro numerador. É uma questão de pertencimento, mas quando vai para a estatística, dizem que é maioria.

E a questão da comunidade quilombola Rio dos Macacos? Haverá solução para esse conflito com a Marinha algum dia?

É uma questão que já extrapolou, estrito senso, a discussão quilombola e hoje se tornou uma questão política.  Este é um problema federal. Há uma disputa de interesses da União. O governo do estado desde o inÍcio tentou ajudar. O processo é complexo. A legislação quilombola é de 1988, pegando a questão constitucional, o Decreto 4887 é de 10 anos atrás, e a Vila Militar está lá desde a década de 50, mas a comunidade, pelo o que se tem nos estudos antropológicos, estaria lá a mais tempo. O que complica é que estamos numa área de extremo conflito, a comunidade denuncia e existem registros reais de que a Marinha cometeu atrocidades terríveis. A alternativa é uma só, desses 301 hectares [identificados pelo Incra como quilombolas] ter um acordo do que é que pode ficar realmente para a comunidade e o que é que a Marinha poderia abrir mão.

Comunidade quilombola Rio dos Macacos, na Bahia | Foto: Cadu Freitas/BnL

Comunidade quilombola Rio dos Macacos, na Bahia | Foto: Cadu Freitas/BnL

E os polêmicos “rolezinhos”, qual sua opinião?

Sempre existiram, mas eram rolezinhos de brancos! Quem frequenta shopping, quem vai aos cinemas, ver aquele conjunto de meninos brancos, que  ficam lá, andam pra cima e pra baixo fazendo zoada, mas aquilo nunca incomodou ninguém. O que começa a incomodar é quando aquele tipo de ação passa a ser feita por jovens da periferia. Os vigilantes começam a seguir, a olhar a forma como esses jovens estão vestidos. Isto é um ponto. A outra questão é espacial, fato que é pouco discutido no Brasil: a segregação e o racismo espacial, como as pessoas são apartadas. Aqui também tem segregação racial.

OUTRAS AÇÕES EM PROL DA IGUALDADE RACIAL | Nós ampliamos, na Secretaria, a discussão de políticas para povos e comunidades tradicionais. Hoje temos na Bahia uma Comissão de Povos e Comunidades Tradicionais, que é de extrema importância, pois além de incluir a questão da ideia da política e do Plano de Desenvolvimento Sustentável para Quilombolas, por exemplo, inclui também esse mesmo debate para povos de terreiro, pescadores e marisqueiras artesanais, ciganos, fundos e fechos de pasto, geraizeiros, são oito seguimentos de comunidades tradicionais além dos indígenas também. A comissão cria as políticas e os planos de desenvolvimento sustentável e de lá pra cá conseguimos publicar a Política de Promoção da Saúde da População Negra [agosto de 2013], tivemos uma grande vitória que foi a criação da lei 12.910 que nos permite regularizar as terras devolutas para fundos e fechos de pasto e comunidades quilombolas. Criamos o Agosto da Igualdade, pois para além de Zumbi dos Palmares, que é uma grande referência nacional e baiana da luta contra o racismo, especificamente na Bahia nós temos os heróis da Revolta de Búzios. Criamos uma espécie de “Novembro Negro” para eles, que e o Agosto da Igualdade, criado no momento que os heróis de Búzios passaram a ser considerados heróis nacionais [projeto de lei incentivado pelo movimento negro baiano, apresentado pelo deputado Luiz Alberto, aprovado pelo ex-presidente Lula e sancionado pela presidenta Dilma em 2011].

*Para entender o que viria a ser a “unimultiplicidade’ é preciso recorrer à eloquência musical de Tom Zé! Veja aqui!