O ator e jornalista de Fortaleza, Ari Arei,a foi alvo de ataques pela internet por conta de sua atuação em uma peça teatral que fala sobre homens transexuais. Idealizado como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), o monólogo Histórias Compartilhadas ganhou os palcos da capital cearense e vem sendo encenado há cerca de 1 ano pelo Outro Grupo de Teatro. Mas foi após ser exibida durante um seminário na Universidade Federal do Ceará (UFC) que o ator passou a receber ameaças na rede social Facebook.

Foto: Reprodução

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Histórias Compartilhadas trata da dor e do sofrimento de pessoas que são discriminadas ou impedidas de se reconhecerem como homens transexuais. A peça se desenha a partir de casos reais, como o de Riley Moscatel, transexual norte-americano que cometeu suicídio no ano passado, aos 17 anos, após assumir sua transexualidade, e o de João Nery, o primeiro homem transexual brasileiro a ser operado.

Durante o monólogo, Ari Areia trabalha com diversas formas de representar essas histórias. Uma delas se refere às dores dos transexuais devido à não aceitação do corpo e às cirurgias de mudança de sexo. O ator abre em si um acesso venoso e pinga gotas de seu sangue sobre uma imagem de Jesus crucificado. “Cristo foi morto por ser incompreendido e injustiçado. As pessoas transexuais são mortas diariamente, há relatos de estupros corretivos. A gente fez essa leitura de Cristo como um signo de mártir”, diz o ator.

Uma foto dessa cena do monólogo foi replicada em uma página do Facebook intitulada “Fortaleza sem prefeito” e maciçamente atacada. Entre os mais de 2 mil comentários, ataques de viés homofóbico e ameaças de agressão e de morte. Areia reuniu alguns dos posts mais duros para embasar um processo criminal.

Seminário

A polêmica se espalhou nas redes sociais após o ator apresentar o monólogo durante o 1º Seminário Conversas Empoderadas e Despudoradas sobre Gênero, Sexualidade e Subjetividades, realizada no dia 17 de maio pelo Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (NUSS) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC.

O escritor, jornalista e doutorando em sociologia Júnior Ratts foi o realizador do evento. Segundo ele, a encenação de um trecho do monólogo fez parte de uma mesa que debateu a identidade trans e as fotos feitas durante a performance foram publicadas originalmente no convite online do evento e compartilhada na página do seminário, ambos criados no Facebook.

“O espetáculo foi uma forma prática de apresentar, de maneira lúdica, todas as discussões proferidas. O conteúdo apresentado foi muito bem aceito por todos os presentes, sendo aplaudido de pé por pessoas que já estavam comovidas pelas histórias de vida apresentadas pelos debatedores. Ou seja, a performance estava completamente contextualizada. Daí a surpresa com o surgimento da polêmica.”

A foto da cena do Cristo ensanguentado vem sendo compreendida especialmente como um ataque à fé cristã. Na sessão de terça-feira (31) da Assembleia Legislativa do Ceará, o deputado estadual Carlos Matos (PSDB) disse que a peça “debocha de um símbolo que representa a fé da maioria dos cidadãos brasileiros”.

Já a Comissão de Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil – secção Ceará (OAB-CE) divulgou nota pública na sexta-feira (3) informando que vai acionar o Ministério Público Federal para investigar a conduta do ator e das demais pessoas envolvidas na exibição da peça.

No texto da nota, o presidente da comissão, Robson Sabino, considera que, “além de exceder os limites da liberdade de expressão, Ari Areia assumiu o risco de sua conduta incorrer em crime previsto no Artigo 208 do Código Penal: vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso.”

Para Areia, a intenção da cena não é atacar a fé das pessoas. “A imagem do Cristo estava ali como signo deslocado. Eu não estava entrando no lugar de culto delas e tripudiando da imagem do sagrado dessas pessoas. Eu estava com um signo deslocado do seu lugar de origem, mas entendendo que aquele signo significava algo que ainda era comum à compreensão geral dele, que é o de uma pessoa que foi crucificada e morta. Independentemente do credo ou de não crer, é uma coisa universal.”

Manifestação da universidade

A reitoria da UFC emitiu nota pública defendendo a convivência entre as posições religiosas, políticas, filosóficas e científicas na universidade e na sociedade. Segundo a universidade, o seminário não tinha “qualquer conotação desrespeitosa e muito menos criminosa”.

“A um símbolo religioso que compunha o cenário da peça foi dado um significado que ultrapassa sua visão estática, recurso corriqueiro no cinema, no teatro, na televisão, em obras de arte, nos museus e exposições, em revistas e jornais e até em festas populares. Ao ser apresentado fora do contexto da encenação e manipulado em redes sociais, um evento simples, rico em significados, academicamente validado, foi transformado por alguns em ‘desrespeito’ e denunciado como ‘crime’.”

Para Ari, o fato de a polêmica em torno da peça ocorrer quase um ano após o início da encenação nos palcos da cidade revela a existência de um contexto favorável a ataques e a desrespeitos. “Acho que existe o avanço de um pensamento conservador que está se sentindo muito à vontade para constranger e ameaçar. É absurdo você ver uma pessoa ameaçando a sua existência e a sua integridade física por conta de uma obra artística.”

Ele espera ainda que a denúncia das ameaças à Polícia Civil tenha um viés didático, no sentido de estimular que outras pessoas que sofrem esse tipo de ataque procurem denunciar como também de mostrar que ataques virtuais têm consequências.

Júnior Ratts, idealizador do seminário onde foi apresentado o trecho de Histórias Compartilhadas, diz que vai continuar promovendo debates sobre gênero e sexualidade e que é preciso pensar em táticas para criar espaços de discussão sobre temas que ainda afetam a sociedade.

“Não temos como estimar os impactos de determinados gestos, artístico ou não, na sociedade em geral, mas nem por isso – ou mesmo por isso – podemos retroagir. O corpo, esta máquina maravilhosa de descoberta de prazeres e saberes, tem sido por séculos invisibilizado através de vários artifícios sociais e, por isso, é chegada a hora de situar este corpo no centro de toda a discussão, seja ela política, artística ou de qualquer outra ordem.”