O Brasil tem vivido nas últimas semanas uma intensa guerra discursiva. Na noite do último dia 17 teve lugar seu primeiro desenlace. Por impressionantes 25 votos além dos dois terços necessários do plenário, a Câmara dos Deputados aprovou a continuidade do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, que vai agora para o Senado, casa que, conforme a Constituição, tem a “competência privativa” para julgar os presumidos “crimes de responsabilidade” imputados à presidente e destituí-la do cargo em consequência disso. No entanto, trata-se de um julgamento político, no qual o reconhecimento desses “crimes” poderia não demandar una estrita definição jurídica, como recentemente chegou a insinuar o STF, cujo presidente dirigirá a sessão de julgamento do Senado. Disso se trata a guerra discursiva, pois o casuísmo de todo o processo o torna muito próximo de um simples golpe de Estado.
Algo similar ocorre em algumas sociedades indígenas, com o fenômeno que os antropólogos chamamos de “acusação de feitiçaria”. Não se trata, nesse caso, de comprovar a feitiçaria em si, como encadeamento causal objetivo, mas, uma vez tomada ela como pacífica, põem-se em movimento outros mecanismos sociais (outros encadeamentos lógicos) que especificarão a figura do feiticeiro, atribuindo-a a alguém em particular, seja por conta de seus defeitos éticos seja simplesmente por conta da fragilidade da sua posição social. A partir daí, vários destinos podem aguardar os eventuais feiticeiros, inclusive (como em uma das sociedades em que trabalhei) sua morte a golpes de facão. A acusação de feitiçaria é quase sempre uma maneira (talvez a mais contundente) de uma sociedade se purgar dos seus fantasmas… e se acomodar com isso. Evidentemente que a ausência de objetividade intrínseca, no caso da acusação de feitiçaria, conspira contra a episteme jurídica moderna, daí a que os ocidentais muitas vezes chamarem procedimentos dessa classe de “medievais”. Mas… e na política? pode-se tudo? inclusive em casos em que se trata de uma irremediável imbricação com a lógica jurídica, da qual um processo qualquer extrai seu próprio fundamento de legalidade?
Mais que fragilidade, o governo Dilma parece ter chegado ao ápice da sua nulidade. Sem iniciativa política, encastelado no mito tecnocrata da suficiência da gestão, perdendo-se em iniciativas equivocadas, abraçando programas que traem tudo o que prometeu nas eleições, caçoando, enfim, dos seus próprios eleitores, o atual governo do Partido dos Trabalhadores (PT) não se parece em nada com o programa histórico que alentou essa sigla em suas duas primeiras décadas de existência. Reflexo pálido do “lulismo”, de seu programa de conciliação de classes e de uma inclusão via consumo ― sem mover uma palha nos termos da regulação da cidadania, conforme a lógica pré-existente do privilégio―, o governo Dilma pretendeu ser a governanta de una casa política em processo de ruína, uma vez ido abaixo o boom das commodities. Estabeleceu-se com ministérios provavelmente os mais inexpressivos de toda a história política brasileira e não soube (tanto quanto não quis) estabelecer canais de entendimento, seja com os movimentos sociais seja com os setores produtivos (exceto o agronegócio latifundiário ―para desespero dos ambientalistas e defensores dos direitos indígenas). Para culminar, abraçou toscamente o austericídio neoliberal e lançou o país na maior recessão econômica dos últimos cem anos.
Por outro lado, o programa político do lulismo, sua opção maximizada pelo consumo e sua escusação da cidadania por meio da pretensa suficiência dos expedientes assistenciais, engendraram uma forma de antipolítica que esvaziou não apenas a antes pujante mediação organizativa da representação social, como também os valores do coletivo e da participação, em nome do individualismo das “oportunidades”. A miragem do lulismo consistiu na ideia de que a gestão da máquina governativa e seus programas cosméticos de distribuição seriam suficientes para proporcionar uma inclusão social que não precisaria se traduzir em ampliação de direitos e em nos valores de uma sociabilidade não excludente. A miragem do lulismoexpressou-se, em último termo, como uma recusa da política, uma recusa da dimensão coletiva e da representação. A reificação da “gestão”, na figura de Dilma Rousseff, é apenas a lapidação lógica dessa miragem.
O resultado, por fim, foi a eleição, junto com o segundo mandato de Dilma, do parlamento mais conservador desde o final da ditadura; um parlamento fragmentado em 28 partidos, mas que, na prática, é dominado por um grupo de 120 deputados pessoalmente fieis ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, inimigo encarniçado da presidente, e sobre quem, há 25 anos, pesam consistentes acusações judiciais por corrupção. A renúncia do PT em fazer política por meio da mobilização social produziu esse mesmo Congresso que no último domingo assestou um pesado golpe contra o mandato da presidente.
Ao se absolutizar o processo de impeachment como julgamento político, o que os fatos desse domingo propiciariam seria a caução da absoluta fragilidade do governo no Executivo diante da Câmara ― presumidamente, esta, uma representação mais “capilarizada” da sociedade: os representantes do povo “no varejo”. De maneira que, simbolicamente, o julgamento sobre o mandato da presidente já chegaria ao Senado em condições de desvantagem para ela. Mais uma vez, estamos em plena guerra discursiva: se se trata de uma confrontação de legitimidades ou se se trata de um golpe de força, pura e simplesmente.
Se as acusações de feitiçaria prosperam, em parte, por conta da fragilidade daquele sobre quem é posta a carapuça de feiticeiro, por outra parte, a própria feitiçaria precisa ser pressuposta como dada, que é o que torna eficaz e inexorável a imputação. Aqui entra o discurso reducionista e messiânico sobre a corrupção, sua mágica de servir como explicação suficiente e totalizadora para a muita saúva e pouca saúde do país, como também a midiática mágica seletiva de tornar o PT o padrinho da corrupção no Brasil, silenciando, oportuna e concertadamente, sobre a aritmética óbvia que lembraria que a recente Operação Zelotes apurou, sob a forma de sonegação de impostos por bancos e grandes empresas, um desvio de 3 vezes o valor apurado como desvios da Petrobrás, e que o caso Banestado desviou para o exterior, durante os governos FHC (sobretudo em propinas da privatização das teles), entre 15 e 20 vezes o valor apurado no mesmo caso Petrobrás. Não é difícil suspeitar que até hoje as offshores tucanas financiem suas campanhas, comprem fábrica de sorvete e sabe-se lá o que mais.
No que respeita à guerra discursiva, o esforço da direita por caracterizar, a posteriori, as manobras de compensação orçamentária do Executivo federal, usualmente praticadas pelos governos anteriores, como crime, consumando uma tentativa de retroatividade legal, impossibilita que, objetivamente, se reconheça a existência de crime de responsabilidade. Juridicamente, ninguém comete crime quando não existe reconhecimento legal do crime. A retroatividade da lei foi um recurso largamente utilizado pelo Estado nazista para culpabilizar tanto os seus indesejáveis quanto a resistência dos países ocupados, como nos lembra Costa-Gavras no clássico “Sessão Especial de Justiça” (1975). Nossos ilustres deputados, no dantesco espetáculo de mediocridade proporcionado no domingo, recusaram-se a sustentar seus votos sobre qualquer argumento processualmente objetivo. Tratava-se apenas de manejar os códigos de uma acusação de feitiçaria, na qual, curiosamente, “Deus”, tal como em processos análogos séculos atrás, foi chamado a ser um dos principais partícipes. Torna-se bastante óbvio que o processo de impeachment, sobre as bases em que se desenrola, configura um golpe de força por parte da direita, a saber, tão apenas um golpe de Estado.
Nessa guerra, o argumento da defesa da democracia animou a oposição ao impeachment a ocupar um patamar discursivo mais universal, o da defesa de princípios elementares da convivência política, congregando toda a esquerda e a cidadania íntegra, e recusando o particularismo de uma estrita defesa do “governo Dilma” (ainda que muitos petistas, tão empedernidos quanto obtusos, assim o queiram entender); governo que hoje, claramente e por todos os seus méritos, não é defensável senão por algo como 9% da população.
A direita, como sempre, não está nem um pouco preocupada com esses escrúpulos. Como é usual, quando se trata da lógica do privilegio, os caprichos oligárquicos não se pautam por outra coisa senão… seus caprichos mesmos. Essa sempre foi sua pragmática implacável. Aplicá-la nunca foi uma questão de necessidade ou de sobrevivência, mas meramente uma questão de oportunidade. Os governos do PT sempre estiveram cegos para isso; foram tão arrogantes em suas ingênuas verdades “republicanas” que desprezaram irresponsavelmente o inimigo. Neste momento, com seus recursos institucionais, econômicos e midiáticos, é a direita que está na dianteira. Mas a eficácia da acusação de feitiçaria que ela arremeteu não seria possível sem um Congresso venal e cínico e, sobre tudo, sem os erros e a recusa da política por parte do lulismo e da tecnocracia autoritária de Dilma Rousseff.
É possível que o eventual (e até provável) impeachment de Dilma, dada a crescentemente flagrante ilegitimidade desse processo (aí incluída sua repercussão na imprensa internacional), acabe, por ironia, por colocar Lula, o patrimônio carismático maior do PT, em excelentes condições para fazer frente às próximas eleições presidenciais, caso não seja antes alcançado pela caçada judicial que já se espera que a direita lançará contra ele. Não obstante, a novidade de tudo isso é que, por conta do seu crônico esgotamento político, o PT se mostre incapaz de capitalizar a indignação gerada no âmbito dessa guerra discursiva, exatamente no patamar mais universal em que agora está posta ― tal como outrora, na década de 80, pôde fazê-lo ―; uma indignação que vem também lastreada como reação ao discurso de ódio propalado pela direita, a mesma que deixou escapar seus mais íntimos fantasmas: aqueles que têm como fantasia erótica dar cabo de todos os feiticeiros esquerdistas a golpes de facão.
A esperança que resta ao PT, portanto, parece ser, cada vez mais exclusivamente, Lula; o que dobraria a aposta e a expectativa em um populismo tout court. Ou então, o que se poderia vislumbrar, a partir da esquerda, seria o começo da gestação de algo para além do progressismo petista, tal como ele se instalou, e que não parece, na atual conformação de referências, de forma alguma representado por um insípido marinismo oportunista que se basta em permanecer à espreita, alheio à guerra discursiva e às contingências que ela instaura.
Por diferentes meios e diferentes modos, o progressismo latino-americano parece estar em refluxo nos espaços de governo (não necessariamente equivalentes a espaços do poder) que vem ocupando no continente, seja através de eleições, golpes parlamentares ou crises intermináveis. O que parece comum a todos os casos não é a existência ou legitimidade de projetos alternativos ― a direita, de sua parte, não tem outra alternativa que não reinstaurar a plenitude institucional e regulatória da lógica do privilegio ―, mas sim os impasses a que conduziram suas próprias insuficiências.
*Por Ricardo Cavalcanti-Schiel/Outras Palavras