É sintomático que Temer odeie o termo “golpe”. Nas “democracias” esvaziadas, não se tenta usurpar apenas o poder político, mas também o sentido dos termos. Por isso, a Resistência é também um ato linguístico…
Por Fran Alavina*
Parafraseando um texto clássico de Michel Foucault, As palavras e As Coisas [Le Mots et Les Choses] que agora em 2016 completa 50 anos de sua primeira edição, podemos afirmar que o poder se exerce sobre as palavras e as coisas. E nesses dias trágicos da vida nacional popular, tal se mostra cada vez mais claramente. O pensador francês nos faz ver ao longo de sua obra, arguta e perspicaz, que o poder não se exerce apenas sob a forma dos aparelhos repressores — ou seja, o poder não é apenas aquele que se impõe pela força física, pela coação do corpo. O poder também se faz no e por meio dos discursos. Mesmo aqueles que não são proferidos dos clássicos lugares do poder, são discursos de poder. Por isso, o caráter discursivo do Golpe não é menor que seu caráter político. São indissociáveis, pois não há política sem discurso, não há vida política sem a ação das palavras que significam e ressignificam as coisas. Sem a palavra, sobra ao poder apenas a coação física, mas esta forma, embora possa ser mais rápida e direta, é menos sutil, portanto mais fácil de ser denunciada. Espinosa, pensador seiscentista, ao denunciar os mecanismos de poder, nos lembra que: “o maior poder é aquele que reina sobre os ânimos (…)”1. Ora, mas como se estrutura esse poder que dispensando a força física, se exerce diretamente sobre os ânimos? Ele se estrutura pelos discursos, é sustentado pelas palavras, uma vez que há uma vinculação direta entre os nossos ânimos e os sentidos das palavras e das coisas.
Desde os gregos, e depois com a tradição retórica civil dos romanos, é fato que a palavra detém maior força nos regimes democráticos e republicanos. A possibilidade da palavra pública torna vivaz a vida democrática, pois os outros regimes políticos são regimes da letra morta (quando na oligarquia o direito da multidão transforma-se nos privilégios de alguns), ou da palavra de um só (nos regimes monárquicos). Ora, segundo aqueles autores da antiguidade clássica, primeiros justificadores da vida democrática, onde a Democracia fenece, degenera-se conjuntamente a potência da livre palavra. Desse modo, todo livre discurso público, toda fala coletiva é índice de vivacidade do regime democrático.
Assim, quando em uma Democracia, as palavras e seus sentidos — que são um bem comum, cotidiano e simbólico de todos, posto que pertencem ao povo, que age delimitando e estabelecendo novos sentidos — são forçadas a mudar pelo árbitro de um, ou de um grupo particular, sabemos que há algo fora da normalidade democrática. Usurpações de poder nunca se restringem apenas à esfera institucional mais imediata. Se o poder se faz pelo discurso, de modo que o próprio discurso é um elemento de poder, o discurso é o poder que se faz não apenas sobre os falantes, mas também se exerce sobre o próprio discurso, isto é, se exerce também sobre as palavras e os termos, que são a unidade mínima de todo discurso. O comando discursivo é a voz do poder; e o silêncio, o signo da obediência: consentida ou imposta.
É próprio dos regimes totalitários proibirem o uso de termos, promovendo um tipo de higienização da língua e dos discursos. Na Itália fascista de Mussolini, por exemplo, procurou-se varrer do território italiano todo falar e expressividade dialetal. A língua do povo era tida como indigna da suposta supremacia do novo regime. Supremacia que também deveria ser linguística e expressiva. No Brasil, este caráter fascista da imposição linguística e vocabular se exerce todos os dias pelo ódio de classe e pela busca de distinção social, quando aqueles que dominam a norma culta da língua usam este elemento como caráter distintivo e discriminatório. Tal vertente fascista se expressa mais ainda quando a língua do povo, gírias e construções discursivas forjadas no cotidiano nacional-popular são levadas para a mídia sob a forma do entretenimento. Sempre apresentada com a roupagem do exótico, escondendo por baixo da capa da curiosidade e do riso, o preconceito vocabular. Quem quiser ver uma boa amostra disso, acesse, por exemplo, os programas da Regina Casé, mais particularmente o “esquenta”. Neste, há a redução da língua do povo ao riso e ao escracho. O jeito espontâneo e criativo de falar do povo torna-se o divertimento dos telespectadores.
Ou ainda, por exemplo, quando os jovens da classe média paulistana tentam se apropriar das expressões da quebrada. Cada vez que pronunciam um mano, ou um suave em tom afirmativo, cometem um estupro vocabular. As palavras saem de suas bocas como que empurradas e constrangidas, pois são usurpadas do mundo de sentido no qual foram forjadas. São obrigados, os jovens da classe média, a usurpar termos, porque seu mundo linguístico é de uma penúria espantosa. A linguagem dos meios técnicos-midiáticos-informacionais lhes rouba a expressividade espontânea e a criatividade vocabular, uma vez que vivem atochados entre a imposição da norma culta e o poder da linguagem uniformizada das mídias. Dessa maneira, são forçados a ser delinquentes da língua. Não podendo usar a norma culta imitando sua melhor forma, por um lado; por outro, também não podendo criar novos termos, pois a uniformização midiática retira dos falantes a criatividade linguística, não lhes resta senão usurpar e copiar em uma imitação pobre e simplória. Fazem como fizeram seus pais ao saírem às ruas nos domingos protofascitas. Copiavam a melodiam da música de Vandré, Pra não dizer que não falei das flores, ou imitavam e usurpavam a palavra de ordem Lula, guerreiro do povo brasileiro, por uma frase de mesmo sujeito, mas de predicado diferente. Esta pobreza criativa da expressividade ganha sua forma mais loquaz no uso das camisas da CBF. Não poderia ser diferente, nada nos domingos protofascistas era espontâneo, pois não há espontaneidade no fascismo.
Essas usurpações discursivas cotidianas agora se mostram sob outro prisma, aquele político, dos discursos do centro do poder. O novo velho que chega pela usurpação, isto é, pelo Golpe, demanda a criação de legitimidade, operando em um sentido contrário ao da normalidade. Pois em regimes democráticos se supõe que quem chega ao poder, chega em virtude da legitimidade popular. De modo que essa legitimidade precede o próprio exercício do poder, logo este último é a própria expressão da legitimidade. Nos casos anormais, como o que vivemos, o exercício do poder precede a legitimidade. Por isso, sendo ilegítimo, necessita criar rapidamente uma legitimidade forçada, falsa e artificial, porém que sirva de cortina para esconder a violência brutal de chegar ao poder pela usurpação. Para tanto, a criação da legitimidade, precedida por uma violência, também ocorre de modo violento. Trata-se de anular as narrativas divergentes, de proibir termos, de querer dobrar à força o sentido das palavras e das coisas. Criando, dessa maneira, uma uniformização narrativa, que é o roubo da livre palavra, o cerceamento da divergência no espaço da palavra pública. É evidente que o poder usurpador e ilegítimo não pode fazer isso sozinho, pois o sentido das palavras e das coisas não é monopólio de ninguém.
Ocorre, porém, que isto, o furto da livre palavra não é algo extraordinário, posto que nas democracias contemporâneas a livre palavra é ameaçada hodiernamente pelos impérios mediáticos. De fato, são verdadeiros impérios, pois são propriedades de famílias que agem despoticamente em favor de seus próprios interesses. De tal modo, que o espaço público da livre palavra não é outra coisa que a defesa de interesses privados e escusos. Tal nos remete, desde já, para um dos sintomas de crise das democracias representativas contemporâneas. Estas estão intrinsecamente unidas à formação da esfera pública da livre expressão por meio da imprensa. Mas quando aquilo que antes esteve ligado à própria constituição da vida democrática torna-se seu veneno, estamos em um curto circuito constitutivo.
Não apenas o exercício do poder político é delegado aos representantes que o exercem em nome dos eleitores, mas a própria possibilidade da livre palavra, do direito ao espaço público da fala se dá por meio da representação. De modo que a livre expressão também está nas garras, isto é, presa aos limites da representação. Com efeito, este exercício da livre palavra feita de modo representativo ocorre quando aquilo que se considera ser a opinião pública se identifica diretamente com o monopólio midiático, quando a opinião pública nada mais é que o acordo forjado entre o editorial do grande jornal e a notícia manipulada da capa, sob o signo de ser um fato; e, não uma informação. Desse modo, quando a opinião pública é tragada pelo monopólio faccioso da notícia, já está montado todo um arsenal de usurpação da livre palavra que precede a própria usurpação do poder. Antes da usurpação feita pelo golpe institucional, já havia a usurpação da palavra, isto é, o golpe cotidiano que é dado contra toda voz divergente.
Donde a livre palavra estar constantemente ameaçada, mesmo na Democracia, pois a regra é a manipulação sob a forma da informação. Contudo, há coisas que são de tal modo absurdamente usurpadoras que nem a mais ferrenha manipulação pode esconder, ou escamotear. É o caso do uso da palavra GOLPE! Ora, sobre ela não se trata simplesmente de uma disputa de narrativas diferentes. Mas, da legitimidade das narrativas, sustentada no sentido, e não no termo em si. É o sentido da palavra que impõe ao usurpador a vergonha de não querer carregar sobre si o termo. Não só isso, a recusa do termo golpe esconde um sentido mais amplo, porém pouco discutido. Trata-se dos golpes contíguos que se seguem do golpe maior. Como é o caso da reforma da providência, cujo sentido do termo reformar é revogar. É o caso da flexibilização da CLT, cujo sentido é o mesmo: revogar. Também no caso da reforma do ensino médio, cujo sentido do termo é enfraquecer e fragilizar a educação pública. Há outros inúmeros exemplos do mesmo tipo, de distorção entre o termo e o sentido, mais que se nutrem de um sentido maior: golpe. Golpe contra a previdência, contra as leis trabalhistas, golpe contra o ensino publico. O governo usurpador, ao usurpar o poder, também busca usurpar o sentido das palavras e das coisas.
O jogo político também se decidirá sobre o plano linguístico, pois é no campo discursivo, apontando o real sentido dos termos, que a denúncia dos golpes contíguos, que tentam se seguir do golpe maior, deverá ser feita. Toda denúncia no jogo do poder também é um ato discursivo: que dá a ver o que deve mostrar2. O ato de desnudar o sentido que os termos do governo usurpador escondem também é um oportunidade para reconstruirmos nosso léxico político, que agora se nutre do sentido maior da Resistência. É preciso forjar o novo sentido da resistência, um novo vocabulário político que nasça das ruas, que agora ocupamos, e que não seja cooptada pela linguagem da homologação e da uniformização midiática.
Podem até distorcer os sentidos das palavras e das coisas em consonância com a usurpação do poder; podem tentar nos impor o monopólio da fala pública e a uniformização da opinião, mas não nos calarão! Podem nos cercear, mas não silenciaremos. Carregamos os sentidos da Resistência em nosso próprio corpo, desde o dia em que ousamos ser mais do que aquilo a que nos destinavam. A voz silenciada não emudece o pensamento, embora lhe possa desferir golpes lancinantes. Cada palavra de ordem que gritarmos, cada termo que forjarmos na nossa hodierna não trégua ao golpismo difuso, será um ato de restituição da livre palavra da qual se nutre a vida verdadeiramente democrática. A Resistência também é um ato linguístico: é o ato da fala persistente, é o ato da voz ousada que sustenta o sentido: das palavras e das coisas. E dar sentido às palavras e às coisas é um dos atos de resistências mais primordiais, quando além de usurparem o poder, querem usurpar até mesmo a nossa voz. Para tanto, sirvam-nos de inspiração as palavras de nosso maior poeta popular, Patativa do Assaré, homem que via o sentido das palavras nas próprias coisas, e nos advertia: “é melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”.
*Fran Alavina é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da USP. Mestre em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP.
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1 Espinosa, Tratado Teológico-Político, p. 252.
2 Foucault, As palavras e as Coisas, p. 23.