Garotos Incríveis é um filme que tem o sabor dos anos 2000. Inveja, fracasso, medo do destino, ego, competição, talento (e falta de talento), tensões na vida pessoal e profissional: eis alguns pontos do vasto feixe de temas da narrativa. Lembra o “charme pessimista” de Beleza Americana, juntamente com o tom pedagógico e intelectual de Encontrando Forrester. Resumindo: é um filme que precisa ser assistido, refletido e indicado ao máximo de pessoas, como manda a boa e ilustre regra básica da “corrente do bem”.
No enredo, Graddy (Michael Douglas) é um professor universitário que atua como escritor em suas horas diletantes. Ele começa a história contando que a sua esposa o deixou. Salva as devidas proporções, tudo andava tranquilamente em sua vida, até que um bloqueio criativo surge bruscamente, o que atrapalha a sua escrita. Para piorar o quadro, ele descobre que a sua amante (Frances McDormand), que é casada, está grávida de um filho seu.
No passado, Graddy escreveu um livro e ganhou bastante prestígio na comunidade acadêmica, entretanto, estagnou-se com o passar do tempo, tornando-se, assim, mais um acadêmico frustrado na constelação de egos que constantemente gravitam em torno da sua existência: os “donos” de Shakespeare, os responsáveis absolutos por “Rosseau”, etc. Algumas experiências, no entanto, vão mostrar ao intelectual outros valores.
A obra escrita há tempos chamava-se A Filha do Incendiário. Após o hiato, outro conflito se estabelece na vida do professor: a chegada do seu editor, o excêntrico Terry Crabtrie (Robert Downey Jr.), que já está com passagem marcada para visitá-lo e adiantou que precisa ver em que nível anda a próxima obra a ser publicada. Mais conflitos? Sim, afinal, não há obra, apenas bloqueios.
Diante de tantas questões, Graddy precisa administrar outras situações pouco práticas. Além de ter que conviver com a gravidez da amante e o processo de impedimento na escrita, o professor ainda precisa lidar com uma de suas alunas, a excepcional e dedicada Hannah (Katie Holmes), uma jovem inteligente, sensível e dona de uma escrita invejável, que se diz apaixonada por ele, no momento (talvez) mais inoportuno da sua carreira. Para complementar a receita repleta de confusões, há James Leer (Tobey Maguire), outro estudante que vive na sua cola, um rapaz soturno, melancólico e sempre mentalmente distante, mas obstinado a encontrar uma jaqueta usada por Marilyn Monroe, artigo memorialístico de alto valor para uma instituição.
O roteiro assinado por Steven Klobes teve como base o romance de Michael Chabon, publicado em 1995. Cheio de ironias e humor refinado, o texto fílmico, encenado brilhantemente pelos atores, centra-se na força de seus personagens, numa produção sobre mudanças nos cursos de nossas vidas, em idades que de acordo com os ensinamentos capitalistas, deveríamos estar estabilizados, longe de múltiplas metamorfoses.
Como elo bem sucedido na balança da vida, temos o Q (Rip Torn), o personagem mais bem sucedido do filme. Ele consegue escrever um livro atrás do outro e obter sucesso de crítica e de público, numa travessia constante pelo sucesso. Por falar “travessia”, um verso elucidativo da trilha sonora diz que há “Um monte de água sob a ponte”, num metafórico tema musical que se tornou faixa ganhadora do Globo de Ouro e do Oscar na categoria de Melhor Canção Original.
A metáfora ganhou maiores contornos quando pensamos nas constantes travessias realizadas pelos personagens, entidades críveis cheias de defeitos: são infiéis, mentirosos, egoístas e cheios de si, em suma, não são heróis, tampouco vilões. Apenas pessoas comuns vivendo as suas mazelas diárias, sem os virtuosismos de certas narrativas artificiais.
A narrativa caminha letárgica em alguns momentos, mas não chega a ser algo incômodo, haja vista os enquadramentos bem tratados, a direção de fotografia de Dante Spinotti e a montagem que une estes delírios visuais com a boa música assinada por Christopher Young. O cuidado foi tão grande que a supervisora musical Carol Fenelan apostou em músicas de grandes artistas e personalidades que provavelmente o protagonista teria escutado ao longo da sua juventude e no florescer da maturidade.
Se pensarmos em um recente artigo publicado por Rosana Pinheiro Machado na revista Carta Capital, intitulado Vaidade e vida acadêmica, perceberemos que o filme é mais interessante do que possamos imaginar. Brigas entre grupos de pesquisas, núcleos, concursos em que as pessoas desistem por saber que as cartas possivelmente estão marcadas, humilhações e ameaças, o preenchimento do Lattes, etc. Como taxa Machado, é preciso repensar a vaidade acadêmica.
O ego e a vaidade gravita em torno dos diálogos nas festas literárias em que Graddy precisa estar presente para não se sentir isolado, ou tornar-se mais obsoleto intelectualmente do que já está, haja vista a data de lançamento do seu último livro, comparado ao “colega” Q, uma máquina de produção intelectual.
Como expõe Machado em seu texto, já se foi o tempo em que mudar o mundo através da universidade era uma preocupação. Agora, o que se vê, é a quantidade de artigos publicados em uma revista QUALIS A, em suportes que sequer os próprios universitários leem, tendo em vista que precisam dar conta das horas em sala de aula, das atribuições administrativas de suas funções e o tempo reservado para o terapeuta, tamanha a quantidade de profissionais da área que surtam por conta das cobranças, das perseguições, dos egos ou do confronto diante dos “donos” de Derrida e de Foucault.
No artigo, Machado ainda expõe, de forma irônica, a vaidade como uma das posturas responsáveis por tornar o espaço acadêmico um ambiente de revanche e humilhações. “Perniciosa, não é a toa que é um dos sete pecados capitais”, debocha a autora com humor bastante refinado, mesmo se tratando de uma questão que urge por mudanças.
Assim, de volta ao filme, percebe-se que ao longo de seus 110 minutos, Garotos Incríveis tem a sua força motriz nos personagens e nos acontecimentos que moldam o percurso de cada um deles, todos diferentes, mas unidos por um ideal: viver uma vida menos ordinária.