No dia 15 de agosto de 1969, a Ação Libertadora Nacional (ALN), organização que teve entre seus dirigentes o guerrilheiro Carlos Marighella, realizou uma audaciosa operação na cidade de São Paulo.

Diferente de outras ações ousadas da época como o assalto ao trem pagador ou o sequestro do embaixador dos EUA, o objetivo dessa ação não era obter dinheiro e nem a  libertação de presos políticos. O objeivo da ação era a transmissão de um manifesto pelas ondas do rádio, o meio de comunicação com maior alcance no país.

Foto: Roberto Viana/Secom/BA

Foto: Roberto Viana/Secom/BA

“Atenção, muita atenção! Senhoras e senhores: tomamos esta emissora para transmitir a todo o povo uma mensagem de Carlos Marighella”. Com essa abertura, os ouvintes da Rádio Nacional paulista, afiliada da Rede Globo, foram alertados sobre o conteúdo que seria transmitido a seguir, por volta das 08h30 daquela sexta-feira, cujo sinal alcançaria o raio de 600 km nesse horário, conforme registrou o jornalista Mário Magalhães no livro “Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo”.

A voz que ecoava nas ondas do rádio não carregava o sotaque baiano de Marighella, apesar de o texto ser de sua autoria. Quem emprestou voz ao manifesto foi o estuante paulista da Escola Politécnica da USP, Gilberto Luciano Belloque, que bolou a estratégia junto ao companheiro José Carlos Lessa Sabbag e apresentou aos dirigentes da ALN, Marighella e Joaquim Câmara Ferreira. “Eles gostaram da ideia, que era muito simples do ponto de vista operacional”, lembra Belloque.

Ouça trecho da entrevista com Gilberto Belloque:

O texto preparado por Marighella começava falando sobre ações recentes que estavam sendo atribuídas a ele e sua organização, como o incêndio provocado nas instalações das TVs Globo, Record e Bandeirantes na capital paulista.

“Brasileiros, queremos esclarecer a opinião pública que os últimos atentados contra as emissoras de TV são contra os revolucionários. Deixamos bem claro que nossos atos de sabotagem e terrorismo são voltados contra a ditadura militar e o imperialismo americano”, dizia a mensagem com o Hino da Independência ao fundo.

Na sequência, a mensagem listava as prioridades da organização contidas no manifesto Ao Povo Brasileiro: derrubar a ditadura militar e anular todos os seus atos desde 1964, formar um governo do povo, expulsar do país os norte-americanos, expropriar firmas, bens e propriedades deles e dos que com eles colaboram, expropriar os latifundiários, acabar com o latifúndio, trannsformar e melhorar as condições de vida dos operários, dos camponeses e das classes médias, entre outros. Ao todo, foram 138 linhas transcritas pelo serviço secreto do Exército, anota Mário Magalhães em seu livro.

A gravação do manifesto foi providenciada em um estúdio para produção de jingles de um amigo de Sabbag, na capital paulista. Para a sessão de gravação do texto, estiveram presentes apenas Belloque, Sabbag e o dono do estúdio.

Ouça trecho da entrevista com Gilberto Belloque:

Para realizar a ação, que contou com a participação de cerca de 12 pessoas distribuídas em um fusca e um Aero Wyllis, os guerrilheiros não ocuparam o estúdio da rádio, localizado  na região central da capital paulista, mas os transmissores que ficavam a 27km dali, em Piraporinha, hoje divisa entre o município de Diadema e São Bernardo do Campo. Metade entrou no prédio onde ficavam os transmissores e metade ficou do lado de fora,esperando. A ideia partiu do próprio Belloque, que já havia trabalhado em rádio no município de Monte Aprazível.

Ouça trecho da entrevista com Gilberto Belloque:

Repercussão

A mensagem transmitida pela Ação Libertadora Nacional não ficou restrita aos ouvintes da rádio graças à atuação de Joaquim Câmara Ferreira, que entrou em contato com Hermínio Sacchetta, seu antigo companheiro de PCB (Partido Comunista Brasileiro). Apesar das divergências políticas e caminhos diferentes trilhados por ambos após a saída do partidão, Sacchetta prontamente se colocou à disposição para colaborar na ação. Como diretor de redação do Diário da Noite, já com o manifesto que seria transmitido em mãos, o militante pediu à repórter que acompanhava o noticiário das rádios para ficar atenta à Rádio Nacional. Mostrou surpresa ao ser avisado da mensagem inusitada transmitida na frequência da emissora e publicou na íntegra o texto de Marighella, como lembra Belloque.

Ouça trecho da entrevista com Gilberto Belloque:

Desdobramentos

Marighella não estava na ação, mas acompanhou a repercussão do caso. No mês de agosto de 1969, o guerrilheiro se refugiou em uma casinha branca no subúrbio de Todos os Santos, o mesmo bairro da rua Honório, onde foram capturados Olga e Prestes, em 1936. A casa era alugada pela irmão de Zilda, uma das companheiras de Marighella. Detalhe: a ditadura militar jamais descobriria o aparelho de Marighella, observa Mário Magalhães em seu livro.

Em abril daquele ano ele começara a gravar com a filha de Zilda, Iara Xavier Pereira, uma série de fitas intituladas Rádio Libertadora. Com o sucesso da ação na Rádio Nacional, ele seguiu com o propósito de divulgar os manifestos em praças públicas, o que nunca aconteceu “Atenção: as gravações em fita das transmissões da Rádio Libertadora devem ser ligadas aos sistemas de alto-falantes dos bairros e subúrbios e irradiadas para o povo, mesmo que para isso tenhamos que empregar a mão armada”, anuncia uma das mensagens.

Ouça um dos áudios da Rádio Libertadora, com a voz de Carlos Marighella: 

Marighella iniciou as sessões improvisadas de gravação com Iara. Desde então ele tenciona reverberar os manifestos da ALN nas praças públicas. O auge do arrojo foi dias antes na tomada da Rádio Nacional, que Marighella festeja em um trecho, alertando para riscos excessivos.

Dezoito dias depois da tomada dos transmissores, o estudante José Carlos Lessa Sabbag acabou sendo morto por oficiais da ditadura na tentativa de comprar um gravador com cheques roubados para dar continuidade à ação.

 *EBC