Dois enredos, uma só história. Bucólico, o lugarejo de “Manuel da Tábua”, no Km 6 da a histórica Estrada Velha do Aeroporto (Eva), a avenida Aliomar Baleeiro, na capital baiana, guarda ainda resquícios de uma vida campal, isolada da urbanidade que a cerca. Escondida em meio a remanescentes de Mata Atlântica, o lugar foi avistado e desbravado pela curiosidade de três estudantes de jornalismo, faz seis anos. Olhar de pré-comunicólogos contrapostos pelo modo de ver de crianças da localidade que ainda vive do seu próprio sustento.

A misteriosa árvore 'guardiã' de Manoel da Tábua. | Foto: André Frutuôso

A misteriosa árvore ‘guardiã’ de Manoel da Tábua. | Foto: André Frutuôso

– Olhando lá para baixo, de dentro do carro, era possível avistar umas casinhas rústicas. Elas ficavam bem afastadas da pista da Estrada Velha, quase que escondidas. A pressa do cotidiano urbano na soterópolis impedia de reparar a vilinha com mais cautela. Um belo dia, com o trânsito travado na região, a observação do local saltou-nos como um ladrão. Aquelas casinhas puderam ser observadas com mais cuidado. Por algum motivo, aquilo chamou-nos a atenção. A vontade de ir até aquele lugar foi inquietante -, narra o agora jornalista André Luis Gomes.

– Dias depois, enfim, ‘desbravamos’ Manoel da Tábua. Logo de início percebemos que se tratava de um local bastante precário. O acesso àquelas casas era uma estrada de terra. Como havia chovido no dia anterior, a terra tinha virado lama. O carro quase atolou. Quando conseguimos nos aproximar de fato, percebemos que eram diversas casas, onde moravam mais pessoas que imaginávamos. Os moradores nos receberam bem, os mais velhos um pouco desconfiados, as crianças alegres, fazendo festa. Pareciam se comportar como se fossem “índios” se encontrando com “colonizadores português” [uma alegoria estereotipada, mas serve para ilustrar como foi aquele momento]. Ficamos um pouco receosos no início, mas logo percebemos que eles estavam com mais medo de nós, do que nós deles -, relembra André Frutuôso, outro dos três estudantes, agora fotógrafo e jornalista.

Vida sossegada dos moradores do local | Foto: André Frutuôso

Vida sossegada dos moradores do local | Foto: André Frutuôso

– Saímos de lá extremamente inquietos. Queríamos contar as boas histórias ouvidas lá, naquele pequeno e esquecido lugarejo. Tentaríamos mobilizar amigos, faculdade, jornalistas, poder público… Eles precisavam olhar para aquela realidade. Meus pensamentos se concentravam nisso.  Mas, de repente, meu celular tocou e a conversa me fez voltar à minha complicada realidade. Frutuôso e Dudu [Carlos Eduardo Freitas, o outro postulante a jornalista, à época]. Nunca mais paramos para pensar naquelas pessoas.

Um contraolhar inquietante do modo como aqueles então jovens estudantes de jornalismo viam o local, foi traçado por uma criança, o pequeno Nandinho, de 8 anos, morador de Manoel da Tábua.

As serelepes crianças do vilarejo | Foto: André Frutuôso

As serelepes crianças do vilarejo | Foto: André Frutuôso

– Daqui vejo lá em cima a pista e os carros passando. As pessoas parecem sempre apressadas e indo a algum lugar importante. Sempre quis saber o motivo de tanta correria, mas eu é que não ia lá perguntar. Um dia, uns caras desceram e vieram falar com a gente. Eu não sei porque ele fez isso. Ninguém vem aqui. Eu pensei até que fosse político, mas eles também nunca vêm e eu não voto. Mas, o cara não pediu nada, só ficou interrogando a gente. Eu fiquei meio assim com ele, mas depois vi que ele era só meio maluco mesmo. Ele realmente era um cara estranho. Já começa que ele veio de carro. Eu acho que ninguém disse a ele que aqui se anda de pé, de cavalo, de burro ou de jegue -, contextualiza, às gargalhadas, o menino.

Com leveza, Nandinho descreve passo a passo daquela troca de experiência recíproca.

A região próxima à comunidade ainda guarda resquícios de uma vida campal. | Foto: Cadu Freitas/BnL

A região próxima à comunidade ainda guarda resquícios de uma vida campal. | Foto: Cadu Freitas/BnL

– Conversar com ele era meio difícil. Não dava para saber quando ele falava comigo ou com uma outra pessoa, não sei de onde, por um celular. À medida que contávamos como vivíamos, ele fazia uma cara de quem estava com dor de barriga. Eu até agora não entendi porque o outros tirava tanta foto. O das fotos achava “interessante” alguns de nós nunca termos saído daqui. Será que ele não entendeu que se alguém quiser sair é só ir andando pelo mesmo lugar de onde ele veio? Ele me pareceu meio bobo, mas acho que ele ficou assim por causa daquela meia dúzia de equipamentos que ele carregava. Teve uma hora em que um deles perguntou se eu já tinha ido num shopping. Eu disse que não. Ele fez uma cara estranha e me perguntou de novo a mesma coisa. Eu ia perguntar a ele o que tinha de tão bacana lá, mas ele parecia achar importante esse tal de shopping e eu não quis ser mal-educado. Ele parecia incomodado com a mata em volta da gente, mas acho que ele gostou de ver a gente pescando no rio daqui. Para mim é algo tão comum que não sei qual é a graça. Eu até ia chamar ele para almoçar, mas achei que ele não ia querer. Depois de um tempo, ele foi embora e nunca mais voltou -, desabafa o irrequieto garoto.

O menino não escondia o apego que detinha ao lugarejo e a estranheza daquela turma de curiosos. Com sabedoria desconcertante, própria da infância, Nandinho fez uma despedida célebre aos amigos forasteiros: – Não sei qual o melhor lugar, se é aqui ou onde vocês moram, onde as pessoas parecem só ter tempo de não ter tempo. Mas, o que eu sei é que gosto daqui de Manoel da Tábua.

 

Essa é a segunda reportagem da série especial sobre a Estrada Velha do Aeroporto (Eva), ou Avenida Aliomar Baleeiro, uma antiga artéria urbana da capital da Bahia, construída na Segunda Guerra Mundial, mais precisamente entre 1943 e 1944, por fuzileiros navais norte-americanos. A via tinha a missão de ligar a Base Naval, em São Tomé de Paripe, à Base Aérea, no Aeroporto, para o transporte de materiais bélicos e logísticos das tropas. A obra, aqui fragmentada, integra o livro reportagem “Histórias de Eva – Outra vez toque de recolher na Pedra do Buraco da Onça”, de autoria dos jornalistas Carlos Eduardo Freitas, André Frutuôso e André Luis Gomes [os personagens mencionados nesta segunda matéria].   

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