Fábio Konder Comparato, um dos grandes juristas do país, alfineta: tribunais não estão acima dos demais órgãos do Estado — mas compõem confraria da dominação oligárquica…
Por João Vitor Santos, no IHU | Imagem: Aroeira
Pensar noutro Brasil, numa nação mais igualitária requer uma primeira ação, capaz de inspirar todas as outras: abandonar o egoísmo. Essa é a perspectiva trazida pelo jurista Fábio Konder Comparato para de fato conceber um país onde o Estado Democrático de Direito vigore. Comparato avalia que “a Justiça no Brasil não é propriamente cega, como mostra o seu símbolo tradicional, mas sim caolha: ela só enxerga os interesses dos oligarcas”. E vai além: “a Justiça no Brasil, por si só, não é e nunca foi um superpoder. Mas ela faz parte do grupo minoritário que desde sempre detém o poder soberano. Os mecanismos judiciários hoje existentes não diferem substancialmente dos que sempre existiram”. Para ele, é aí que reside esse espírito egoísta capaz de corroer toda uma nação, porque cada um pensa sempre em se perpetuar ou estar próximo ao poder.
Para Comparato, o Brasil não chega ao status de democracia, pois nesse regime “o povo não é mero figurante do teatro político, mas titular da soberania ou poder supremo”.
E conclui, fazendo um apelo: “Que se inicie desde logo, e se consolide, um vasto programa de educação ética em todos os níveis, reunindo as principais religiões do Brasil, a fim de que sejamos ao final capazes de rejeitar o egoísmo, que tomou conta do nosso povo, e que constitui a alma do capitalismo, como assinalou o Papa Francisco.”
Fábio Konder Comparato é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em Direito pela Université Paris 1. É professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra e especialista em Filosofia do Direito, Direitos Humanos e Direito Político. É também titular da Medalha Rui Barbosa, conferida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.Comparato é autor dos artigos Brasil: A dialética da dissimulação, Cadernos IHU ideias, nº. 239, e O poder judiciário no Brasil, Cadernos IHU ideias, n°.222.
Confira a entrevista.
A Justiça no Brasil é mesmo cega? Por quê?
Até hoje, desde que os primeiros portugueses aqui aportaram, no início do século 16, o poder supremo pertence e tem sido exercido, sem descontinuar, por um grupo oligárquico composto de potentados econômicos privados e grandes agentes estatais, sob a égide do capitalismo. O Poder Judiciário, com raras e mui honrosas exceções individuais, sempre fez parte desse grupo oligárquico. Portanto, seria melhor dizer que a Justiça no Brasil não é propriamente cega, como mostra o seu símbolo tradicional, mas sim caolha: ela só enxerga os interesses dos oligarcas.
Em que medida se pode afirmar que no Brasil de hoje o Poder Judiciário assume um status de superpoder? Esse status pode inebriar os mecanismos de regulação do Judiciário? Por quê?
A Justiça no Brasil, por si só, não é e nunca foi um superpoder. Mas ela faz parte do grupo minoritário que desde sempre detém o poder soberano. Os mecanismos judiciários hoje existentes não diferem substancialmente dos que sempre existiram.
A ministra Cármen Lúcia assume a Suprema Corte nacional com o discurso de que “o cidadão não está satisfeito com o Judiciário e nem o Judiciário está satisfeito com o Judiciário”. Qual a questão de fundo nessa mensagem da nova presidente do Supremo Tribunal federal – STF? Em que sentido pode ser considerada uma autocrítica e como pensar em deixar o cidadão e o próprio Judiciário satisfeitos com o Judiciário?
Gostaria que a ministra Cármen Lúcia reconhecesse publicamente que os ministros do Supremo Tribunal Federal são juridicamente irresponsáveis: eles não respondem perante ninguém por seus atos ou omissões. Gostaria também que, a partir desse reconhecimento, ela tomasse a iniciativa de propor uma só medida, para dar início ao processo de estabelecimento de um Estado de Direito neste País: a mudança da jurisprudência do Supremo Tribunal (acórdão na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.367/DF), segundo a qual “o Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o STF e seus ministros”.
Integrantes do Ministério Público e do Judiciário do estado do Paraná ganharam notoriedade com a Operação Lava Jato, mas também se tornaram notícia ao promoverem uma explosão de processos contra jornalistas que denunciaram esquema de supersalários em reportagens. O que esse episódio revela sobre o Judiciário e sobre o Ministério Público no Brasil e a ideia de regulação – ou não regulação – de ambos? E sobre a relação entre imprensa e operadores do Direito, o que evidencia?
O episódio simplesmente revela que a Operação Lava Jato foi arquitetada e posta em execução pelo Judiciário, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal com um objetivo claro: extinguir o perigo político, representado para o atual grupo oligárquico brasileiro por Luiz Inácio Lula da Silva. Em toda a história de nossa mal chamada República (porque a verdadeira, ou seja, aquela concebida pelos romanos, é o regime político em que o bem comum do povo – a res publica – está sempre acima de qualquer interesse particular). Lula foi o primeiro Presidente oriundo da classe proletária e não do grupo oligárquico.
E mais: foi eleito e reeleito para exercer a chefia do Estado, e ao terminar seu segundo mandato contava com 80% de aprovação popular. Só mesmo um idiota era incapaz de perceber que essa situação abria uma possibilidade – enfim! – de se iniciar o processo de substituição da oligarquia pelo verdadeiro regime democrático, no qual ao povo não se reconhece apenas o direito de votar em eleições, mas também e sobretudo: 1) o poder de decidir diretamente as grandes questões de interesse nacional (como as mudanças constitucionais, por exemplo); e 2) o poder de exigir seja desde logo iniciado o processo de desmontagem dos mecanismos de desigualdade econômico-social, que condenam à vida de senzala um número sempre mais elevado de pobres.
Mas é preciso não esquecer tampouco que os dois governos de Lula enfraqueceram o superpoder do imperialismo norte-americano, em dois setores-chave: 1) a exploração pela Petrobras das nossas reservas do pré-sal (consideradas entre as maiores do mundo); 2) a união dos Brics, ou seja, de cinco dentre as maiores potências econômicas do mundo: Brasil, Rússia, Índia, China eÁfrica do Sul. É por isso que as más línguas dizem que o início da Operação Lava Jato numa determinada comarca de Curitiba não aconteceu por acaso, pois o juiz Sérgio Moro, ao que parece, é amigo íntimo de Tio Sam. Em 2007, ele fez, a convite do State Department, um curso de “líderes potenciais” nos Estados Unidos. (Não se pode deixar de indagar: um magistrado é líder de quem?).
O que o processo de impeachment de Dilma Rousseff revela sobre a relações políticas no Judiciário brasileiro? E também a partir de todo esse processo e também da Operação Lava Jato, como compreender a ideia de judicialização da política?
O processo de Dilma Rousseff revela que continua em curso um processo, iniciado há mais de quinhentos anos…, não de judicialização da política, mas sim de politização da Justiça
No cenário do Brasil de hoje, o Estado Democrático de Direito é exercido plenamente?
A Constituição Federal de 1988 abre-se com a declaração solene de que “a República Federativa do Brasil […] é umEstado Democrático de Direito”. Afirmação absurda, pois o Brasil não é e nunca foi uma República. Como já advertira Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil publicada originalmente em 1627, “nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada qual do bem particular”. O Brasil tampouco é uma Democracia, na qual, como já disse, o povo não é mero figurante do teatro político, mas titular da soberania ou poder supremo; nem um Estado de Direito, porque (entre outras razões) o tribunal a quem incumbe precipuamente “a guarda da Constituição” (Constituição Federal, art. 102) não está sujeito a controle algum.
A Lava Jato é tomada como a panaceia contra a corrupção nacional, assim como a Operação Mãos Limpas na Itália. Entretanto, o combate à corrupção italiana chegou a um limite. O senhor acredita que essas ações anticorrupção têm uma espécie de prazo de validade? Por quê?
A Operação Mani Pulite [Operação Mãos Limpas] não apenas não conseguiu “limpar” a política italiana, como abalou sua economia e pôs no poder durante quatro governos parlamentares “um lídimo varão de Plutarco” (…), denominado Silvio Berlusconi, que se tornou réu em vários processos penais, nos quais, como o nosso Eduardo Cunha (entre outros), não chegou e provavelmente não chegará a ser condenado. É verdade que o juiz Sérgio Moro, ao que parece, não conhece a língua italiana e escreveu sua tese sobre a Operação Mãos Limpas estudando em livros norte-americanos, ou traduzidos em inglês. Mas, enfim, ele poderia talvez se informar bem melhor consultando o Google…
Deseja acrescentar algo?
Faço um apelo para que se inicie desde logo, e se consolide, um vasto programa de educação ética em todos os níveis, reunindo as principais religiões do Brasil, a fim de que sejamos ao final capazes de rejeitar o egoísmo, que tomou conta do nosso povo, e que constitui a alma do capitalismo, como assinalou o Papa Francisco. Esse generalizado costume de busca do interesse próprio, em detrimento do bem comum do povo, nos foi insuflado desde o início da colonização.