Não só no Sul da Bahia os conflitos de terra envolvendo indígenas têm se intensificado nos últimos anos, em proporções extremas de violência. Reportagem especial da Agência Pública, que o Bahia na Lupa mostrará em uma série de cinco partes, retrata que a bestialidade contra os indígenas no Brasil é antiga como a grilagem de terras

“Houve matança. De 10 mil Tenharim sobraram pouco mais de 200"... | Foto: APública

“Houve matança. De 10 mil Tenharim sobraram pouco mais de 200″… | Foto: APública

A história do conflito em Humaitá é também a história da BR-230, a Rodovia Transamazônica. A rodovia rasgou a cidade – e também o território ocupado pelos indígenas. Com 4.223 quilômetros, ela foi inaugurada em 1972 pelo ditador Emílio Garrastazu Médici. Agora os Tenharim querem contar com detalhes essa história, como disseram à reportagem da Pública, recebida por eles no dia 3 de janeiro.

Em Humaitá, os brancos também conhecem o enredo, mas preferem falar em off sobre a violência cometida naquele tempo. “Quem veio para cá foram homens”, conta um dos entrevistados. “Aí quem queria pegar uma mulher tinha de matar um índio e pegar uma índia”.

Em sua língua, Augustinho Tenharim conta mais do que isso, traduzido pelos irmãos Zelito e Aurélio Tenharim: “Houve matança. De 10 mil Tenharim sobraram pouco mais de 200. Alguns trabalharam como escravos, para ajudar a construir a estrada. O pagamento era em alimentos. Os servidores levavam as índias e devolviam após 15 dias, 20 dias, um mês. Para mim é a segunda vez que está acontecendo algo desse tipo”, diz, referindo-se à hostilidade enfrentada por eles desde o desaparecimento dos três brancos na região no dia 16 de dezembro. “Um momento muito crítico. Temo pelos netos, pelos parentes. Achei que nunca mais ia acontecer”, lamenta o ancião.

O histórico é importante para justificar a cobrança de compensação, decidida por eles em assembleia, e definida pelos brancos como pedágio. “A vida nunca vai ser paga, foi quase uma extinção”, diz o cacique Aurélio Tenharim. Outro ponto destacado por eles é o fato de que, ao longo da Transamazônica, a floresta amazônica só está totalmente preservada – o que é visível – na Terra Indígena. “O governo nunca teve política pública para o desenvolvimento dos povos indígenas. Nós somos os protetores da Amazônia”, sublinha Aurélio.

O antropólogo Edmundo Peggion, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara, estudou os Tenharim no mestrado e doutorado. Não há exagero no relato dos Tenharim, ele diz, ao se referir ao massacre na abertura da Transamazônica. Esse massacre foi também lembrado publicamente por Aurélio Tenharim em debate no dia 7 de janeiro com o comandante militar da Amazônia, general Eduardo Villas Bôas.  O antropólogo confirma que a população original, de 10 mil pessoas, foi dizimada.  Chegou a pouco mais de cem pessoas na época da abertura da Transamazônica – onde, de fato, os Tenharim trabalharam. Nos anos 80 eram 180 membros da etnia. Quando ele fez mestrado, de 1993 a 1996, eram 300.

Foi Peggion o responsável pela delimitação do atual território indígena, em 2002, quando houve um esforço para demarcação contínua. Ele agora é uma das poucas vozes, além dos indígenas, que os defendem dos boatos e das acusações precipitadas. Para o professor, não foram os Tenharim os responsáveis pelo desaparecimento dos três homens. “Eles diriam”, afirma. “Somos guerreiros, assumimos o que fazemos e não temos nada a ver com esse desaparecimento”, escrevia Angelisson Tenharim no dia 27 de dezembro, por mensagem, do quartel onde estava confinado, em Humaitá.

O antropólogo também rebate o argumento dos que afirmam que os Tenharim seriam “aculturados”. “Eles têm uma auto-estima muito elevada”, explica. “Eles têm ritual tradicional e são quase 100% bilíngues. Conversam em português, viram e falam com os parentes na língua deles. Dado tudo o que eles sofreram, para hoje, estão numa situação estável, do ponto de vista populacional e cultural”.

Tomado de surpresa pelos acontecimentos, Peggion está apreensivo. Ele vê na reação de desdém e hostilidade das pessoas da região o velho paradoxo que marca a relação entre indígenas e brancos: “ou são selvagens, quando são acusados de vingança, ou são aculturados, nem índios são”. Neste último caso, diz o professor, fica implícita a pressão para que sejam liberadas as terras indígenas.

*APública