Não há escapatória. De alguma maneira, sou sempre afetado pelo mundo que me cerca, delimita, (des)orienta e inquieta. Também sou afetado pelas pessoas, imagens, palavras, sentenças, discursos e silêncios. No só depois, os efeitos irrompem em mim de uma forma tão inquietante que atualmente tenho a possibilidade de elaboração por meio da escrita, desejoso de provocar efeitos em você e tantos outros e outras que agora me leem.

Ao escrever “que agora me leem”, dou-me conta do quão profundo é esta afirmação, pois verdadeiramente, ao escrever, dou aos outros a possibilidade de me ler, estando também incluso aspectos de minha vida, marcas de uma história não linear coletivamente produzida. Também, via escrita, posso ler o mundo e essa leitura é sempre atravessada por outros que me ajudam até hoje a (re)ler relendo-me.

Nunca imaginei estar nesta posição – alguém que escreve – mas aqui estou me deparando, mais uma vez, com a responsabilidade que tenho em mãos e com minha incompletude.

Hoje, almejo refletir sobre algo que me ocorreu neste fim de semana de formação, informação, encontros e (des)encontros. Em verdade, os ecos de pensamento começaram na quarta à noite dando a primeira aula semestral de orientação profissional em um curso de Psicologia. Foi nela que um jovem relatou que, entre os alunos de sua turma, numa escola soteropolitana da rede estadual, apenas ele tinha conseguido chegar à Universidade, sendo a maioria dos seus colegas exterminada pelo tráfico: “eles só pensavam em ser traficantes”, relatou.

Eu escutava atentamente e me incomodando com a perversa realidade por ele e tantos outros enfrentada…

Foto: Vagner Carvalheiro

Foto: Vagner Carvalheiro

Na sexta feira, indo para um espaço formativo, uma fala, em especial, desencadeou também um processo reflexivo em mim. Geralmente escuto mulheres olhando para homens gays socialmente bonitos e dizendo: “Meu Deus, que desperdício!”

Essa afirmação, repleta de espanto e perplexidade, dá-se quando se deseja “um certo alguém” que se sente atraído por homens. Uma grande amiga outrora me disse: “Ai, meu Deus, não posso nem concorrer, pois o que ele quer, eu não tenho” ou “Deus me livre ser traída por outro homem. É pior que ser por mulher, pois não tenho nem como concorrer”… ou ainda: “Por que os homens gays não são os mais feios? Logo os bonitinhos, Jesus?”.

O que está por detrás dessas afirmações é a tentativa de ter o objeto desejado, de não desperdiça-lo. Como tenho feito um movimento de conhecer o significado das palavras, fui ao Google e me deparei com os seguintes: “substantivo masculino. Despesa ou gasto exagerado, esbanjamento… uso sem proveito, perda…” Ao escrever estes dois últimos, seus sentidos me saltam aos olhos… Realmente, a palavra é criadora. O faça-se se atualiza, o “verbo se faz carne”…

Articulando as falas escutadas com os sentidos etimológicos e os em mim provocados, comecei a ir além… Bem sabemos que a beleza impacta a nossa existência e, diferente do que pensa o senso comum, beleza se põe à mesa.

Depois do ocorrido, comecei a pensar sobre quem realmente se preocupa com o desperdício que é ver gerações de jovens, em especial, sendo assassinada pelo tráfico, massacrada pela opressão dos vínculos precários de trabalho ou pelo desemprego? Quem se incomoda com o desperdício de vidas que não tem a possibilidade de desenvolver suas potencialidades e habilidades?

Na formação que tomei, foi dito que a educação superior tem a missão de contribuir com o desenvolvimento da nação. Porém, apesar dessa necessidade, percebo que temos ainda caminhado na direção contrária. São vidas ceifadas em todos os sentidos e pouco ainda se tem feito para mudar essa realidade. Por vezes, me vem uma sensação de desesperança, noutras, lembro que também sou responsável pela mudança.

Hoje, logo pela manhã, uma canção me perpassou quando afirmava: “Será que alguém é capaz de escutar a voz que grita em mim?”

“Sonho em mudar o mundo…”. Eu ainda sonho… E Transformo em realidade em pequenos atos, em pequenos fragmentos de texto…

Que o meu coração sempre se inquiete com essas questões, atualizando em mim o “Meu Deus, que desperdício!”.