Conheça a realidade e o talento de jogadoras que precisam vencer o preconceito e a falta de estrutura para garantir espaço no esporte considerado a “paixão nacional”, em série de três reprotagens…

Vinte times de futebol feminino, de 14 estados, iniciaram a disputa pelo título de campeão brasileiro no dia 7 de setembro. Durante dois meses, as equipes vão participar do campeonato que ocorre anualmente desde 2013 e é organizado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). A TV Brasil transmite o campeonato pela TV aberta e na internet.

Foto: EBC

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Entre os times, condições bem diferentes de preparação. No Maranhão, o Esporte Clube Viana tem dificuldades para conseguir campo para treinar e as jogadoras não têm chuteiras. Já o Kindermann, de Santa Catarina, tem estrutura própria, como campo e alojamento, que garante a preparação das jogadoras. Nos dois casos, os times são os únicos a representar seus estados na competição.

A atacante do Viana, Alessandra Moreira, 20 anos, terminou o ensino médio no ano passado e conta com o apoio da mãe para continuar a jogar. “A gente tem que se virar, porque aqui ninguém ajuda. Eu penso em investir na carreira, mas se depender de São Luís, vai ser difícil”, relatou a jogadora criticando a falta de incentivo do Poder Público e de interesse de patrocinadores.

A condição é diferente para as jogadoras do Kindermann. O clube tem a própria estrutura de treino e as atletas recebem ajuda de custo (entre R$ 500 e R$ 3,8 mil), além de bolsa integral de estudos da Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (Uniarp).

Persistência e dedicação em campo

Os megaeventos esportivos no Brasil, a retomada do Campeonato Brasileiro Feminino, os investimentos do governo federal e a formação da Seleção Feminina Permanente são fatores que contribuíram para a situação de maior visibilidade do futebol de mulheres hoje.

Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista na temática mulher e esporte, Silvana Goellner acrescenta um fator à lista: a persistência e a dedicação das atletas.

“Podemos atribuir [essas conquistas] também à persistência dessas mulheres que, com um cenário tão adverso, continuaram investindo no futebol. Apesar de entender o futebol de mulheres como ocupação, e não como profissão, pois muitas delas precisam ter outras formas de subsistência”, destacou a pesquisadora.

Silvana diz que o futebol masculino no Brasil é uma exceção a todos os esportes e discorda de comparações entre a modalidade feminina e a masculina. “[O futebol masculino no Brasil] não pode ser comparado nem ao feminino nem a outra modalidade esportiva, seja em termos de investimento, visibilidade, condições de infraestrutura ou calendário de campeonato”, afirmou.

Clubes cedem nomes e escudos, mas apoio é público

Foto: EBC

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O time de futebol feminino da Marinha do Brasil já usou a camisa do Vasco, do Botafogo e, hoje, defende o título pelo Flamengo. Em menos de cinco anos, foram três clubes.

As equipes paulistas – São José e Ferroviária –, que também irão disputar o Brasileiro Feminino, são outras que carregam o escudo dos clubes, mas, na prática, só recebem o apoio financeiro da prefeitura e de patrocinadores. Embora não utilizem a mesma infraestrutura disponível para os homens e não recebam recursos, as mulheres herdam a apaixonada torcida dos clubes tradicionais.

Na Ferroviária, time da cidade de Araraquara, no interior paulista, a falta de recursos também é a justificativa para não manter um departamento feminino. “A situação é a mesma de vários clubes. É a prefeitura que cuida do futebol feminino, a Ferroviária só empresta o nome e o escudo”, explicou Felipe Blanco, gestor de marketing. A ajuda de custo das atletas é pago pelo governo municipal durante 11 meses do ano, variando de R$ 150 a R$ 1.200.

Mas nem todos as equipes conseguem se manter. O time do São Paulo anunciou seu encerramento, por razões financeiras, após perder a final do Campeonato Paulista Feminino. O clube explicou que o patrocinador não repassou, nos últimos quatro meses, os valores devidos.

Como funciona o campeonato

Os times que disputam o Campeonato Brasileiro Feminino estão divididos em quatro grupos com cinco equipes cada, que se enfrentam na primeira fase da competição. Os dois melhores de cada grupo seguem para as etapas seguintes: segunda fase (oito clubes distribuídos em dois grupos), semifinal (quatro clubes distribuídos em dois grupos) e final (um grupo de dois clubes).

Uma novidade nesta edição é que, na segunda fase da competição, os times poderão contar com o reforço de jogadoras da seleção permanente. Os critérios do sistema de seleção, conhecido como draft, ainda serão divulgados.

São Paulo é o estado com o maior número de times na competição. Serão seis na disputa pelo título: Adeco, Ferroviária, Portuguesa, Rio Preto, Santos e São José. Em seguida, está o Rio de Janeiro com dois clubes: Duque de Caxias e Flamengo. Os demais estados participantes têm apenas um clube: Iranduba (AM), São Francisco (BA), Caucaia (CE), Viana (MA), Mixto (MT), América (MG), Pinheirense (PA), Botafogo (PB), Foz Cataratas (PR), Vitória (PE), Tiradentes (PI) e Kindermann (SC).

Confira tabela dos jogos do campeonato e cobertura completa no Portal EBC

A história do futebol feminino

Conta a história do futebol que as regras do esporte e a primeira bola de futebol do país vieram para São Paulo na bagagem de Charles William Miller em 1894. De lá se difundiram pelo país inteiro e começaram a se formar clubes e ligas de futebol profissional. Já a história do futebol feminino no país não é tão fácil de rastrear.

Não existiam, logo de início, partidas oficiais de futebol feminino. Daniela Alfonsi, do Museu do Futebol, conta que há indícios de que mulheres jogavam futebol já no começo do século XX, mas não havia registro em jornais.”A gente levou um susto quando viu que, em 1926, o circo ‘Os Irmãos Queirolo’ anunciou em seu espetáculo um torneio de futebol feminino. Essas moças vestiam as camisas dos clubes por onde o circo passava”, conta.

Foto: EBC

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Sobre a falta de notícias nas páginas esportivas, Aira Bonfim, também do Museu do Futebol, explica que é possível encontrar um pouco da trajetória do futebol feminino nas notícias de polícia: “Havia notícias da proibição do esporte, time sendo preso, a técnica sendo prejudicada ou tendo o nome dela sujo”.

Em 1941, o governo de Getúlio Vargas baixou um decreto lei que proíbia as mulheres de praticarem esportes que fossem contra “as condições de sua natureza”. Daniela Alfonsi, do Museu do Futebol, esclarece que “o decreto não especificava qual o esporte, mas logo se lê nas entrelinhas que o futebol era um deles”.

Mesmo que ilegalmente, algumas mulheres continuaram praticando o esporte, até que em 1965 surgiu uma nova restrição. A Ditadura Militar, por meio do Conselho Nacional de Desporto (CND), publicou a resolução número 7/65, que proibiu as mulheres de praticarem lutas, futebol, pólo aquático, rugby e beisebol no país.

Mudança após as medalhas

A lei só vai ser revogada 14 anos depois, quando uma equipe de lutadoras de judô foi até o Uruguai participar de uma competição. “O técnico inscreveu todas as mulheres com nomes de homens para o CND não barrá-las. Quando elas voltaram, o CND percebeu e as chamou para serem interrogadas. Elas apareceram no interrogatório vestidas com o quimono de luta e com as medalhas que tinham conquistado.”, conta Mariane Pisani, Antropóloga da USP.

A primeira seleção brasileira de futebol feminino foi convocada pela CBF em 1988. Das 18 jogadoras convocadas, 16 pertenciam ao Radar, principal time de futebol feminino da época. Esta equipe conseguiu vencer o “Women’s Cup of Spain” , derrotando seleções como Portugal, França e Espanha e ganhando o primeiro título internacional para o Brasil. Depois disso, o futebol feminino cresceu muito e a Fifa passou a organizar os eventos da modalidade, realizando inclusive a primeira Copa do Mundo em 1991, na China. Em seguida, vieram a inclusão da modalidade nas Olímpiadas de Atlanta em 1996.

*EBC