Acompanhe mais uma reportagem especial em homenagem aos 466 anos, que serão celebrados no próximo domingo, 29 de março. A capital baiana é de belezas inigualáveis, mas também de paradoxos e invisibilidades alarmantes… 

 

“Aos poucos o verde da paisagem, vista pela janela do carro, ia desaparecendo. De repente um susto. Parecia uma grande ferida. A mata atlântica parecia que havia sofrido um feroz ataque”…

Passado o Km 6 da Estrada Velha do Aeroporto (Eva) a poesia começa a se exaurir. A robustez das memórias do local aos poucos vai dando espaço, ou melhor, vai perdendo espaço para uma realidade, um tempo presente, não muito lisonjeiro. A linha do tempo histórica que revelou lembranças de como o lugar foi construído, dos glamorosos sítios, das paisagens campais, do tempo da guerra, agora é desfigurada por milhares de metros quadrados de terraplanagem, de bolsões de luxo e riqueza em meio a também bolsões, só que de miséria, pobreza e desigualdades. Não só a violência é quem deixa marcas neste local, a especulação imobiliária veio com força e ocupa cada metro quadrado da região.

Foto: Cadu  Freitas/BnL

Foto: Cadu Freitas/BnL

Os belos versos que, como bolhas de sabão, subiam cristalinas e desenhavam o rosto feliz dos moradores antigos da velha estrada, aos poucos foram substituídos por prognósticos duros do desenvolvimento urbano que vêm se instalado sem planejamento ao longo dos 17 quilômetros da Eva, estrelado por “meia dúzia” de empreendimentos imobiliários de grande e médio portes.

Uma irônica ambiguidade dava sinais de existência na Eva contemporânea. Desenhada sinuosamente como um pincel cheio de tinta guache escorregando por uma tela de pano, a velha estrada foi ganhando ao longo dos 65 anos de existência nove grandes bairros: a Vila Canária, Sete de Abril, Jardim Nova Esperança, Nova Brasília, Trobogy, Canabrava, São Cristóvão, Mussurunga e Cajazeiras. Pequenos bairros e comunidades foram se encaixando nos espaços vagos entre estes bairros, poções de mata atlântica e a estrada, como é o caso de Vila Verde, Vila Coração de Jesus, Bosque Real, Vilamar, Daniel Gomes, Jaguaripe II, Novo Marotinho, Vila 2 de Julho.

Foto: Cadu  Freitas/BnL

Foto: Cadu Freitas/BnL

Este é um capítulo paradoxal Estrada Velha do Aeroporto.  Os bairros que margeiam velha estrada são estigmatizados pelo restante da população de Salvador devido aos índices elevados de violência na região. Há um aumento no índice de homicídios na região nos últimos anos. De acordo com o Fórum Comunitário de Combate à Violência, os assassinatos representam 60% das mortes violentas em Salvador, principalmente em bairros periféricos, como é o caso dos bairros que margeiam a Eva. Dados do Centro de Documentação e Estatística Policial, ligado à Secretária de Segurança Pública baiana, indicam que mais de 10% dos homicídios dolosos ocorridos na cidade foram na Estrada Velha.

Por outro lado, a especulação imobiliária tem focado a construção de seus empreendimentos nesse local. Do Alpha Ville 2, passando por condomínios da construtora mineira Tenda, OAS e outros tantos do Programa de Arrendamento Residencial, do Governo Federal. São dezenas deles às margens da Eva.

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– Há uma mudança geo-territorial se configurando na região da Estrada Velha do Aeroporto. E o que muda com a chegada desses condomínios privados em meio aos bairros populares é o próprio conceito de cidade. A cidade possui a conotação de ser um espaço de diversidade e isto é a principal característica de qualquer cidade. No momento em que é trabalhada nessa reorganização do espaço urbano a criação de áreas segregadas, vai sendo acentuado a discriminação de espaços como se estivéssemos voltando à Idade Média. Isto corresponde à negação do conceito clássico de cidade e é o que está acontecendo na Eva. A longo prazo, isto é muito perigoso, porque vai estimular cada vez mais a violência urbana, vai mostrar diferenças sociais gritantes. Eu arrisco dizer que voltamos um pouco, talvez, aos momentos de agressividade típicos do período medieval, só que com nossas novas conotações.

O alerta, inconveniente para os empresários do setor imobiliário, foi feito pelo arquiteto e professor de urbanismo Armando Branco.

É a representação das “Muralhas invisíveis da Babilônia Moderna”, de Nicolau Sevcenko (1985). Famílias se isolam dentro de grandes muros, cercados de segurança, para poderem, dentro deles, construírem casas sem muro, com amplos jardins e viverem em “harmonia” com a natureza, em condomínios com clubes privativos. Esses condomínios se caracterizam por serem “mundos” restritos, por criarem modos de vida próprios e díspares com o contexto onde estão inseridos. São “fortalezas” alheias aos acontecimentos e problemas das comunidades pobres onde estão implantados. Os moradores vivem nesses conglomerados alheios às questões que acometem o exterior dos condomínios.

Foto: Cadu  Freitas/BnL

Foto: Cadu Freitas/BnL

– Os padrões urbanísticos, os padrões de moradia, contribuem para acelerar níveis de violência urbana, eu falava anteriormente que esses condomínios fechados criam um sentimento de exclusão, um sentimento de segregação que não é bom, porque isso vai alimentando uma baixa auto-estima na população em geral, de que existem pessoas eleitas, pessoas que podem viver em boas condições de vida, enquanto outros não têm essa chance. Há cem anos nós tínhamos cerca de 10% a 15% das pessoas vivendo na cidade e o restante da população vivendo no campo e em cem anos nós invertemos esse quadro. Hoje nós temos 82% vivendo na cidade e só 18% vivendo no campo e isso pegou muito de surpresa a administração pública. Convenhamos também que no período da ditadura militar houve um cerceamento na discussão dos problemas brasileiros, então nós passamos um longo tempo sem poder discutir abertamente e propor questões importantes nesse aspecto.