Ecoando, ainda os recentes festejos do Dia do Folclore [comemorado em 22 de agosto], a cultura popular brasileira se reinventa com grupos e artistas se apropriando das redes sociais e da tecnologia da informação, de modo a permancerem atuais, de acordo com o presidente da Comissão Nacional do Folclore, Severino Vicente. A entidade foi criada no fim da década de 1940, com orientação da Unesco, para divulgar a cultura do bem e salvaguardar o patrimônio cultural num mundo pós-guerra.

Foto: Rodrigo Soldon

Foto: Rodrigo Soldon

Segundo Vicente, a cultura popular nacional está passando por redefinições que tendem a acompanhar as transformações do contexto sociocultural brasileiro. “A tecnologia da informação é um dos instrumentos mais importante para se trabalhar o folclore e a cultura popular. É de fundamental importância. Está ajudando e vai ajudar muito mais a salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro.”

Pesquisador de cultura popular e afro-brasileira, Nelson Inocêncio, professor do Departamento de Artes da Universidade de Brasília, destaca a boa relação entre a tradição e o novo. Ele acrescenta que a cultura popular não está parada no tempo nem presa à práticas e tradições do passado.

Tecnologia

“As ferramentas tecnológicas devem existir também para contribuir com o conhecimento de toda atividade cultural e artística. Então, vejo com muitos bons olhos. Em sala de aula, já mostrei para os alunos que essas possibilidades existem. Trouxe um vídeo que era um cordel transformado em desenho animado. Uma coisa não está lá e outra cá. Você pode estabelecer convergência entre o que há de tradição na cultura popular e o novo, essa tecnologia que pode nos servir.”

Mas nem todos encontraram o caminho das teclas. Apesar de manter um perfil no Facebook, o mestre da Folia de Reis Sagrada Família da Mangueira, Hevalcy Sylva, afirma que, por enquanto, a tecnologia não conseguiu favorecer o grupo.

“Pode ser que futuramente surja alguma coisa do gênero para a folia. A Folia de Reis Sagrada Família da Mangueira é um dos folguedos retratados no Mapa de Cultura do estado do Rio de Janeiro  e reúne 120 documentários e 8 mil fotos, divididos em 3,5 mil verbetes. O levantamento abrange os 92 municípios do estado, com informações sobre as categorias Espaços Culturais, Agenda Fixa, Gente, Patrimônio Material, Patrimônio Imaterial e Destaques.

Cultura popular atualizada

Entre 26 e 31 de outubro, ocorrerá o XVII Congresso Brasileiro de Folclore, em Belo Horizonte, organizado pela Comissão Nacional. Segundo Severino Vicente, um dos focos do encontro será atualizar a Carta Nacional do Folclore, que teve a primeira versão lançada em 1951 e a segunda em 1995.

“As duas têm conteúdo muito bom, mas nós achamos que está na hora de fazer uma releitura, porque as coisas caminham tão rápidas que temos que acompanhar. A Carta do Folclore Brasileiro é o instrumento da Comissão Nacional de Folclore que não dita norma, mas orienta como se trabalhar o folclore e a cultura popular em um mundo em transformação.”

Conforme Severino, o que deve ser incluídos na carta são as matrizes culturais que não tinham sido contempladas. “As matrizes culturais alemãs, italianas, que são trabalhadas no Sul e Sudeste do país, são contempladas por uma coisa chamada de aceitação coletiva, que é um dos pontos importantes do folclore brasileiro. É aquilo que o povo viu, fez, faz, aceitou e tomou como seu. Faz parte do contexto geral do folclore e da cultura popular brasileira. A tradicionalidade, a dinamicidade, a antiguidade e a aceitação coletiva sustentam o folclore.”

Se na carta de 1995 havia a preocupação com a influência da comunicação de massa, agora serão incorporadas as novas tecnologias benéficas para preservação e difusão das manifestações culturais. “Há esse processo que a gente chama de hibridação cultural, o que é uma realidade no contexto do folclore e da cultura popular brasileiros. Uma depende da outra, uma se apropria da outra. Uma se alimentando da outra. Hoje em dia a cultura popular canta isso”, afirma Vicente.

Coordenadora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Elisabeth Costa destaca que a cultura popular se transforma a todo momento. O centro é ligado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e é a única instituição pública federal que desenvolve e executa programas e projetos nessa área.

Ela lembra que grandes festas brasileiras, como o carnaval, são tradições importadas e que o haloween americano já está incorporado à cultura nacional. “No Brasil, virou uma grande festa à fantasia. Os adultos se vestem de esqueletos, demônios e coisas mais macabras, mas nas escolas as crianças usam fantasias de Emília, Power Ranger, Peter Pan, entre outras. Imagino que, entre 20 e 30 anos, a festa será exclusivamente brasileira. Vamos incorporar mais uma oportunidade para festejar.”

O professor Nelson Inocêncio lembra a necessidade de se tomar cuidado para que a globalização não vire um “globaritarismo” cultural. “Quem é que participa e como participa do projeto de globalização? Não queremos ser expectadores. Queremos ser produtores, participar do processo global. Aí sim, estaremosr falando de uma globalização no sentido mais democrático.”

Folclore ou cultura popular?

Apesar de muito usados como sinônimos, Inocêncio diferencia os termos folclore e cultura popular. Segundo ele, a palavra folclore é uma construção ideológica para dar uma hierarquia aos diferentes tipos de arte. “O conceito de folclore foi constituído pela elite europeia do século 19, que, para não tratar o universo cultural dos camponeses e depois dos povos colonizados na África e na América Latina, resolveu denominar a produção cultural desses povos como folclore, numa maneira de criar uma classificação e ao mesmo tempo uma hierarquização.”

O professor questiona a existência de dois nomes para definir o mesmo fenômeno. “O Ocidente definiu o que era religião. O que não era, virou crendice. O Ocidente definiu o que era língua e os outros povos falavam dialetos. Então, na perspectiva do mundo ocidental, desde a era colonial, a arte era o que o Ocidente produzia e o que os povos não ocidentais produzia era artesanato. Tudo isso é uma construção ideológica.”

inocêncio diz que é preciso superar o limite que estabelece a ideia da “alta cultura” e da “baixa cultura”, que supervaloriza a arte chamada erudita, em detrimento da arte popular. “São problemas que precisamos superar, de modo a não ficarmos distantes da aspiração de uma sociedade democrática de fato, em que a gente valorize e respeite todas as possibilidades, todas as formas culturais. Prefiro usar o conceito de arte e cultura popular, porque estou admitindo que se trata de cultura e também de um universo em que existe uma produção artística com sua especificidade.”

Sobre a importância de se comemorar o Dia do Folclore, Inocêncio destaca que se trata da dimensão simbólica da questão. “Ter um dia para pensar sobre tradição e cultura popular no Brasil é fundamental.”

*Agência Brasil