Antes do invento e da popularização da imprensa por Gutenberg, na Europa, havia, entre pensadores renascentistas, um popular método de guardar e exprimir conhecimento por meio da memória e do corpo. Esse procedimento era conhecido como Arte da Memória. Tal técnica permitia que um homem pudesse organizar todo o saber sobre o mundo conhecido até então através de estruturas arquitetônicas imaginárias, onde cada aposento, coluna ou espaço suscitava memórias sobre a natureza e o cosmos. Era possível, por exemplo, imaginar um passeio por uma catedral ou cidade em que cada detalhe poderia representar uma espécie de alfabeto visual. Com isso, aquele que quisesse se lembrar de algum assunto específico poderia retomar o passeio e, por meio de associações, falar e comentar sobre os temas pré-estabelecidos, porém sempre atualizados pela memória.
Nesse sentido, no saber, erigido pela Arte da Memória, o corpo vivo era o instrumento de conhecimento, pois era dele que emergia a própria memória e a imaginação. Com a popularização e a massificação dos livros e da cultura escrita, muitos desses humanistas previram que seus sistemas de memória logo seriam substituídos e, também, que as catedrais e palácios imaginados desapareceriam. Eles não estavam inteiramente errados, a facilidade em se ter um livro relegou para segundo plano a memorização, agora inútil, já que não era mais necessário memorizar um livro inteiro, pois era relativamente fácil ter uma cópia para si. Do mesmo modo, o papel do corpo e do efêmero, na edificação da ciência ocidental, perdeu espaço e aquilo que “valia a pena” ser registrado foi depositado em um livro pousado na estante empoeirada do gabinete e do apartado de um corpo vivo.
Ao longo do tempo, essa transformação na cultura ocidental, conjuntamente com influencias judaico-cristãs, reforçou a divisão entre o corpo e a mente. A mente, associada à alma imortal, passava a ser extremamente valorizada e cultivada. Por outro lado, o corpo, ou a carne, confundia-se com o efêmero, com o pecado ou com a vergonha sendo, por isso, inferiorizado nas hierarquias dos saberes. Dessa forma, na cultura escrita, o conhecimento era fruto da mente e não mais do corpo e, por consequência, todas as outras culturas centradas no corpo foram rotuladas como inferiores ou primitivas, isto é, incapazes de criar uma relação profunda e verdadeira com o mundo.
Porém, nas diversas regiões da África, em que a tradição oral sobreviveu ao processo colonizador, capitaneado por europeus montados em suas bibliotecas, o corpo ainda mantém sua importância central como produtor de sentido e conhecimento. Mesmo na trágica travessia da Kalunga (grande mar na língua bantu), na assombrosa era do tráfico de escravizados para o Novo Mundo, corpos negros inseridos em culturas orais resistiam bravamente ao exercício diário de violência por parte das tripulações. Nesse sentido, a luta pela preservação da memória, por parte dos escravizados, dava-se ainda nos infames navios negreiros. Seja no convés superior, quando as tripulações forçavam os escravizados a dançarem e cantarem para exercitarem seus corpos ou no convés inferior, em que afloravam importantes laços de identidade nos cantos de lamentação e conspirações contra capitães e marujos impiedosos, o corpo tinha um papel importantíssimo como instrumento de resistência.
Desta forma, os africanos que atravessaram o oceano Atlântico não deixaram sua cultura em seu continente de origem, pois tal cultura não estava depositada em um livro ou em um lugar específico, mas ancorada em seu próprio corpo, em constante processo de ressignificação cultural. Assim, se concordarmos com o escritor e roteirista nigeriano Ola Balogun, para quem a arte é, acima de tudo, um veículo de comunicação numa dada sociedade, no sentido em que o seu papel consiste em difundir influências cosmológicas, podemos então definir a “gramática” corporal de inúmeras culturas africanas como plenamente artística.
Os sentidos e a arte nas culturas orais repercutem na importância dada às expressões que têm o corpo como suporte de comunicação: a palavra, a dança, a música e a visualidade. Para o escritor e historiador malinense Hampaté Bâ, por exemplo, na tradição Bambara, no oeste da África, o mestre iniciado chamado Komo (sempre um ferreiro ou íntimo do trabalho com o elemento metálico) conta que a Palavra – ou Kuma – é uma força fundamental que emana do Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. A fala, instrumento por excelência do corpo, nesse universo atravessado pela cultura oral é o instrumento da criação: “Aquilo que Maa Ngala diz, é!”.
É através da fala, portanto, que Maa Ngala anima as forças cósmicas que dormiam, estáticas, em Maa, o homem, o qual, por sua vez, também é investido com o poder de animar o mundo, isto é, colocá-lo em movimento. É também por meio da Kuma – ou Palavra -, que Maa incita as forças que estão estáticas nas coisas. Isso acontece através do som que emana do seu interior, porém para que a Kuma produza um efeito total, as palavras devem ser entoadas ritmicamente, pois o movimento precisa de ritmo. Assim, a Kuma deve sempre reproduzir um movimento de vaivém, a essência do ritmo. Maa e o cosmos estão sempre em expansão e retração em perfeita harmonia.
Ainda distante dos nossos sistemas de pensamento e compreensão ocidentais, as expressões plásticas de algumas regiões africanas, como no caso dos Bambara, quando deslocadas para galerias e museus na África ou no Ocidente perdem parte de seu referencial mais profundo. Diferentemente da tradição ocidental, que costuma separar tanto a máscara africana de seu contexto quanto o corpo e a mente, as culturas enraizadas em tradições orais, geralmente, concebem o homem em relação integral com o universo. Seus corpos não são individualizados nem repartidos, mas dançam com o todo. Nesse caso, a eficácia visual de uma máscara bambara dá-se ao se integrar com o movimento contínuo do cosmos, no vaivém descrito por Hampaté Bâ. A máscara é, portanto, vivida na relação com o chocalho nos tornozelos, com o bater das mãos e com o ritmo da música e do ritual. Seus traços estão sempre na iminência do movimento e produzem um sentido local e intenso.
Outro bom exemplo pode ser encontrado na Namíbia. Os povos de etnia Himba também dão sentido para sua existência através do corpo, transformado em suporte de comunicação e significado comunitário. As mulheres cobrem-no com um creme chamado por elas de otjize, composto de manteiga, ocre esfarelado e argila de tom avermelhado. Não apenas o otjize, mas também diversos adereços constituem os “enfeites” que o preenchem de signos específicos e variados. Nesse sentido, elas o convertem no meio e na finalidade de uma visão. Elas deslocam e “escondem” o corpo “natural”, oferecendo uma nova intensidade. Transformam a si mesma de maneira visível, entregam-se ao grande cosmos, revestindo-o de uma forma sensível e convertendo corpos individuais em coletivos, pois estão inseridos plenamente na “gramática” daquela comunidade.
Não seria exagero relacionar a rejeição ao corpo, como suporte de expressão e conhecimento, ao preconceito existente em relação a cultura africana como um todo. Contudo, como vimos, culturas ancoradas no corpo também produzem significados e comunicam experiências profundas e verdadeiras. Ao invés de rotular e hierarquizar como modos de vida primitivos, poderíamos despir nosso olhar ocidental e tentar compreender seus mecanismos e experiências, não para reproduzirmos, mas para percebermos que existem inúmeras maneiras de viver o mundo e que todas alcançam seus fins através de diferentes caminhos.
*Por Rafael Gonzaga/Afreaka