Silviano chegou ao pequeno povoado de Caroço da Manga beirava a meia noite. Rapagão da cidade grande, ele estava exausto após castigante viagem no lombo de uma Veraneio caindo aos pedaços e lotada com o povo do interior, sacos de farinha, fumo de corda e algumas galinhas caipiras amarradas como um cacho de bananas. Ele só queria visitar o velho avô que não via há 18 anos.
Meia hora de caminhada pelas ruas escuras, apertadas e desabitadas do lugarejo, Silviano encontrou uma turma de jovens senhores a prosear, enquanto batiam um velho dominó, na pracinha do lugar. Só tinham a lua a alumiar, um pequeno candeeiro de querosene apagando e meia garrafa de pinga à embebecer a brincadeira.
– Boa noite, gente boa – saudou o forasteiro.
– Procuro a casa do velho Mirô. Vocês o conhecem?
– O velho Mirô Dente N’Água?! Claro que conhecemos – exaltou o coroa mais animado da turma.
Dente N’Água?! – retrucou Silviano, meio sem entender a alcunha dada ao avô.
– Isso mesmo! Aqui em Caroço da Manga todo mundo só chama o velho Mirô de ‘Dente N’Água’! – Berrou, impaciente, outro coroa, com a cara mais enfezada.
– Liga não, moço. Baltazar “tá” perdendo no dominó e fica assim com essa cara de poucos amigos e com esses modos. Liga não! – apaziguou o mais velhinho da turma, com cara de vovô gente boa.
– Certo. Mas Mirô aqui só tem esse tal de ‘Dente N’Água’ mesmo?
– Só! É o único. Ele chegou aqui tem uns 18 anos, veio lá das bandas da “capitá”, começou a criar umas “cabra” e umas “galinha”, e vive aqui até hoje – explicou o coroa mais animado.
– Então é ele! – se alegrou Silviano, apesar de não lembrar de ter ouvido tal apelido nos tempos em que conviveu com o avô.
A turma ensinou o caminho e o forasteiro aprumou rumo à casa do velho Mirô. Lá chegando, encontrou o avô sentado à porta de casa, numa antiga cadeira de balanço, tragando a derradeira baga do cigarro de fumo de corda.
– Meu avô!!! Meu avô!!! Quanto tempo?! Lembra-se de mim? Seu neto, Silviano!!!!
– Ôoooo, meu Deus, não acredito no que “tô” vendo!!! Silviano, é você meu “fio”?!
– Sim, “vô”, sou eu! Vim lhe visitar, matar a saudade!
– Mas entre, menino, venha “tumá” uma caneca de café e prosear dessa novidade…
Após horas de prosa, uma pulga ‘coçava’ atrás da orelha de Silviano. – Dente N’Água… pergunto ou não pergunto a meu avô a origem dessa alcunha tão descabida? – pensava o jovem.
Resolveu não perguntar, não queria constranger o velho logo no reencontro. Poderia ser zoeira da turma do dominó. Melhor não arriscar.
Silviano dormiu com a dúvida. Acordou no meio da madrugada. A cama improvisada no banco da sala do casebre do avô não era confortável, o calor se apoderou do pequeno cômodo, não tinha nem um ventilador, quiçá o ar condicionado que o jovem ostentava em seu quarto, na capital.
Levantou em meio ao breu da casa, o velho Mirô havia apagado os candeeiros antes de dormir. Silviano pensou em usar a luz do celular como lanterna, mas a bateria do aparelho havia descarregado ainda na estrada. Tateando as paredes, conseguiu chegar ao banheiro. Precisava se refrescar, jogar água no rosto, na nuca.
Lá chegando, encontrou a pia cheia d’água. Achou ser costume do lugar e tratou de banhar a face, a nuca e toda a cabeça com aquela água. Aproveitou para fazer um bocejo e beber uns goles também. A poeira da estrada tinha lhe deixado com a goela seca e, naquela escuridão, não havia como encontrar o filtro.
Fresco, voltou a dormir. Despertou antes do avô, no primeiro cacarejar do galo no quintal. Voltou ao banheiro para fazer seu xixi matinal. Enquanto se aliviava reparou num objeto ao fundo da pia, com a água que ele havia bebido e se refrescado na madrugada.
Era a dentadura do velho Mirô!
– ARRRRRRRGH! Diaaaaabos! Que porcariiiiiia!!! Mirô Dente N’Águaaaaa!!!
E aos berros de nojo se arrependeu amargamente por não ter perguntado ao avô, na noite anterior, o enigma do apelido cabeludo. “Dançô”.