A cultura brasileira tem base, sobretudo, em introjetar no imaginário social e coletivo uma parte mágica e que dista léguas e léguas da realidade mas, que ainda sim, é tão próxima e comum ao metodismo. Conceber figuras que versam sobre a formatação d’uma ideia propensa a proteger a fauna e a flora (como o conhecido Curupira — menino de cabelos super vermelhos e pés virados) ou que ajudam na educação disciplinar dos pais para com os seus filhos (como é o caso da Cuca — jacaré-fêmea com aspecto humano) constrói, ainda que pouco
perceptível (mas decisivamente) o identitário nacional.

O folclore (podendo ser traduzido como “cultura popular”) é, para além de seu misticismo, encantamento e presença cotidiana no boca a boca, uma força quase sobrehumana: resgata, entre percalços tão caóticos e pontiagudos da colonização europeia, um arcabouço intelectual negro aforodiaspórico e indígena que foi (e ainda é) gradualmente trucidado pelo outro — branco com um ideário mortuário e extremista de civilização — através de projetos meticulosamente pensados e aprimorados ao longo da cronologia social,antropológica e histórica brasileira, que transitam desde a aniquilação concreta das etnias submetidas à dominação até a sua marginalização e consequente invisibilidade em diversos aspectos da vida costumeira.

Trazer às claras histórias que têm sua gênesis em tradições àgrafas e que dizem tanto sobre conjunturas que, como dito anteriormente, foram paulatinamente genocidadas, é não deixar com que se apague sua presença dentro do território e explicitar para as novas gerações que sim, esses povos esociedades são basais para tudo que temos e desfrutamos hoje (desde palavras tão banais até ao que estamos vestindo). O folclore reflete também a
miscigenação: há a integração de diversas etnias dentro de personagens que passeiam por lugares esotéricos e tão “pés no chão” e que transmitem, para além de simplórias lendas, as andanças, os falares e o ordinário de uma massa.

Tornar o folclore patrimônio imaterial e material é segurar a mão de corpos quase mortos (pedindo por amparo), jogados ao léu por séculos e séculos e que estão quase à beira de caírem num abismo de esquecimento e desumanização propositalmente colocados em tal situação. O folclore é irreverente ao tempo e a cólera de um cenário violento, que mesmo democrático, tem repulsa e dificuldade de sustentar as diferenças. O folclore é irreverente porque é inenarrável para a preservação da língua originária e africana, simbologias e
significados.

Texto de: Eliel Figueiredo