Há um golpe de Estado em curso, mas é difuso. Alastra-se como um câncer, alimentando-se da crise do Lulismo e da deriva neoliberal de Dilma. A chance de combatê-lo seria uma nova aliança…
A crise política por que passa o Brasil hoje é complexa demais para ser compreendida pelas formulações maniqueístas que predominam nos debates cotidianos. Tanto a tese da presidenta corrupta quanto a tese do golpe cuidadosamente orquestrado pela oposição são demasiado reducionistas. Há um golpe de Estado em curso, mas ele é difuso, paulatino e contingente. O golpismo atual é como um câncer para o governo Dilma: espalha-se de forma sorrateira de um setor para outro da sociedade, ora se retrai por causa de ações do governo e da mobilização de segmentos da sociedade civil, ora se fortalece pela ação dos partidos de oposição, do judiciário partidarizado, da mídia oligopolista e dos especuladores financeiros. É doença oportunista e difícil de tratar.
A crise política atual não é uma crise do segundo mandato da presidenta Dilma, é um agravamento da crise do Lulismo como conjuntura da economia política brasileira. O primeiro sintoma do esgotamento do Lulismo foi a onda de manifestações de rua ocorrida em 2013, ainda que o conteúdo destas manifestações tenha sido ambíguo e não apenas direcionado contra o governo federal liderado pelo PT. Paradoxalmente, as manifestações de 2013 e a insatisfação corrente de parte da classe média com a administração da presidenta Dilma são, em parte, resultado do desenvolvimento econômico socialmente-inclusivo que ocorreu nos governos do PT. Com a barriga cheia e a carteira de trabalho assinada, os “emergentes” passaram esperar mais do Estado brasileiro. A crise se aprofundou com a persistência da recessão econômica mundial, especialmente com a desaceleração da economia na China e o fim do “boom” das commodities. Depois de uma vitória apertada nas eleições presidenciais e da eleição de um parlamento mais conservador em 2014, a adoção de uma política econômica neoliberal não foi suficiente para acalmar as elites do país, intensificou a recessão econômica e começou a alienar atores que historicamente compunham a base de sustentação social do PT (sindicatos, parte da classe média e movimentos sociais).
Diante desta crise do Lulismo, táticas que a oposição vinha adotando desde que Lula assumiu a presidência da república passaram a surtir efeito. A primeira tática é a oposição midiática, em que grandes empresas de comunicação realizam uma cobertura jornalística que maximiza os problemas e minimiza os avanços do país e do governo. No mesmo sentido, casos de corrupção envolvendo políticos da oposição quase nunca chegam às manchetes e são logo esquecidos pelos jornalões. Aqui está em jogo a opinião pública. A presidência de Lula sobreviveu ao escândalo do mensalão, mas o mesmo não se pode dizer do segundo mandato de Dilma, diante dos atuais escândalos de corrupção num quadro de crise econômica. A segunda tática é a judicialização da oposição, em que certos atores no Ministério Público, na Polícia Federal, no Tribunal de Contas e no Poder Judiciário intensificam a severidade em processos contra membros do PT ao passo em que relaxam o rigor em processos contra membros dos partidos de oposição. No Congresso Nacional, que provavelmente é a instituição mais desmoralizada do país, a oposição partidária tira vantagem de ambas as táticas e adota as suas próprias. A política de chantagens do presidente da Câmara Eduardo Cunha é exemplo emblemático. Subjacente a tudo isto, está o histórico anti-petismo das elites e da porção conservadora da classe média. Trata-se de preconceito da “casa grande”, levemente contido durante o período de bonança econômica, mas que voltou com força, inclusive com tom macartista, impulsionado pela valorização do dólar (um dos principais “termômetros” da opinião pública da classe média brasileira). Estes vetores, embora contingentes, parecem estar se fortalecendo e convergindo.
Por um lado, o noticiário extensivo sobre casos de corrupção e a punição de políticos corruptos (às vezes acompanhada de recuperação parcial de recursos públicos desviados) são sinais de fortalecimento das instituições políticas brasileiras. Quem conheceu bem o Brasil anterior ao ano 2000, sabe que hoje o combate à corrupção é muito mais intenso, que o Estado, com todos os seus problemas, é muito mais transparente. Pensar que as notícias de corrupção se proliferam apenas por causa da suposta improbidade do PT é ingenuidade ou viés de oposição. Entretanto, as duas táticas de oposição enfatizadas acima são sinal de que duas instituições fundamentais para o bom funcionamento de uma democracia – a mídia e o judiciário – são débeis no Brasil, pois não tem independência e são partidarizadas.
Diante da progressão do câncer golpista, o governo precisa tentar novas terapias. Minha aposta é que, no final das contas, são as ruas que definirão o resultado. Se a mobilização das bases históricas de sustentação do PT for igual ou mais forte do que a mobilização da oposição, Dilma terá chances de concluir seu mandato. Lula, o PT, os sindicatos e os movimentos sociais progressistas precisam fazer, rapidamente, uma ameaça crível para a oposição, para o vice-presidente Michel Temer e para os membros vacilantes da “base governista” no Congresso. Precisam demonstrar, nas ruas, que, com um impeachment, o país ingressaria numa situação de caos persistente e que nenhum presidente que substituísse Dilma seria um presidente feliz.
*Por Felipe Amin Filomeno/Outras Palavras