Ophelia reescreve seu destino. Queima-o, redescobre-se. A Ophelia, forjada no Sul da Bahia, nas águas de Canavieiras, diferente daquela personagem da obra original Shakespeariana de Heiner Müller – Hamlet Máquina (1977), decide viver e viver para si. As palavras intensas de Gabrielle Santana, autora, diretora, atriz e mais um leque de funções no recém lançado curta-metragem, fazem jus ao ritmo, fotografia, luz e enredo da produção audiovisual baiana. Estreante na aventura cinematográfica, ela conversa com exclusividade com o Catado de Cultura e revela as entrelinhas do filme e a transformação que ele propõe.
Roteiro, direção, atuação, produção, luz, montagem, edição. Você praticamente fez tudo em Ophelia. Essa unimultiplicidade, como diria Tom Zé, é seu DNA artístico?
Eu diria que é muito mais necessidade do que um DNA artístico em si (risos). Eu venho de uma formação onde aprendi que o/a artista precisa saber se auto produzir. Entender um pouquinho de tudo “pra sobreviver”. Mas acho que para além disso, esse é um reflexo do mercado. Nós, artistas independentes, aprendemos a fazer tudo com muita raça e pouco recurso. Existem poucas políticas de incentivo e, com a pandemia, tudo se agravou um pouco.
Ophelia foi um trabalho onde eu tive praticamente zero de investimento, mas muita boa vontade (risos) e vontade de criar acima de tudo.
Mas esse trabalho só foi possível de ser realizado por causa do Projeto IluMINA. Foi onde eu obtive os meios para trazer Ophelia pro mundo e por isso, eu agradeço imensamente a Larissa Lacerda, Milena Pitombo e Maria Carla. Assim como as mulheres brilhantes da Dimenti Produções. A ideia do projeto consistia em aulas de iluminação gratuitas para 75 mulheres que passaram por uma primeira seleção. Após 1 mês mais ou menos, cada uma de nós ficou responsável pela elaboração de um projeto, tendo a luz como mote principal. 12 foram selecionadas para colocar esses projetos em prática. Então, antes tudo, eu sou uma aprendiz.
Não só da luz, mas do cinema como um todo, afinal, minha formação é em teatro. Ophelia foi uma grande aventura, foi navegar em rios novos. Mas me sinto orgulhosa pelo resultado e por mobilizar pessoas muito talentosas, que foram o Lucas Báfica e a Hevelem Matos, daqui da minha cidade natal para estarem comigo. Sou grata!
Ophelia é um brado de liberdade para ecoar na luta diária por empoderamento feminino?
Acredito que sim! Para mim, Ophelia está num lugar de resignificação muito grande. Principalmente do espaço que as personagens femininas ocuparam e ocupam dentro de uma dramaturgia masculina. Em Hamlet, Ofélia é constantemente silenciada pelos homens que a cercam. Ela está a mercê do pai, do irmão, do amor que ela sente por Hamlet e do próprio Hamlet em si. Além de ser colocada constantemente de lado e ter sua própria vontade praticamente roubada, existe em Hamlet uma dicotomia imposta para personagem que vemos acontecer, até hoje com nós mulheres, na vida.
Em dado momento, ao recusar Ofélia completamente, Hamlet sugere que ela vá para um convento ou um bordel. E no fim, ela vai à loucura e fica subentendido o seu suicídio nas águas. Essa narrativa é constante. Ou somos as santas ou as putas ou as loucas da história. Quando Heiner Müller escreve Hamlet Máquina em 1977, Ofélia é tirada desse lugar. Ela rompe com as barreiras do lar que a castraram, se liberta dos amores que a machucaram. Ela grita por liberdade, assim como nós. Não queremos mais ocupar o lugar que sempre nos foi socialmente imposto.
Dessa vez, Ofélia decide viver e viver para si!
O filme inicia com tensão e drama e se encerra com sorriso e bailar, é também um recado de esperança e otimismo, em meio à tudo que temos vivido?
Ophelia fala sobre estar cara a cara com seu destino e mudar a sua narrativa. Acredito que hoje estamos enfrentando um destino, se é que posso chamar assim, muito cruel. Então, respondo essa pergunta com uma outra pergunta. O que fazer para mudar esse destino? O que nós, como cidadãos, podemos fazer para passarmos por esse momento com mais serenidade e consciência?
Falei em dicotomia na pergunta anterior e é possível ver que hoje vivemos uma grande dicotomia sobre o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que é mau. Acredito que quando entendermos de fato a gravidade do que estamos vivendo, quando nos juntarmos para sermos melhores e menos egoístas, aí sim, haverá esperança. Pode ser que isso seja uma utopia? Sim. Mas talvez seja importante viver um pouco no sonho.
Ofélia sofreu um destino trágico em seu enredo original, mas fez tanto barulho, que vive até hoje em discussões dramaturgicas, femininas, psicológicas e filosóficas. Ofélia renasce todos os dias. Talvez devamos nos inspirar nela para reescrever nossa história. É sempre uma possibilidade.
Sinopse
Ophelia é um curta-metragem assinado por Gabrielle Santana (@gabriellestn) criado a partir do Projeto IluMINA, realizado pela Dimenti Produções. Ophelia tem como texto e mote criativo o monólogo da personagem em Hamlet Máquina, escrito por Heiner Müller em 1977. No curta, vemos Ofélia em confronto consigo, retratando o seu processo de queima e redescoberta. Enfrentando sua prisão, física e não física, Ofélia se vê de encontro com o símbolo do seu destino trágico. Será que dessa vez ela se joga nas águas?
O curta ficará disponível para visualização até o dia 15/04.
FICHA TÉCNICA:
Roteiro e Direção: Gabrielle Santana
Atuação: Gabrielle Santana
Produção: Gabrielle Santana e Lucas Báfica
Assistência de Produção: Hevelem Matos
Concepção de luz: Gabrielle Santana
Montagem de luz: Gabrielle Santana e Lucas Báfica
Operação de Câmera: Lucas Báfica
Edição de Vídeo: Gabrielle Santana
Edição de Áudio: Lucas Báfica
Orientação: Lelê (Larissa Lacerda)
Trilha Sonora: Allégro- Emmit Fenn; Creep- Emmit Fenn; No8 Requiem- Ester Abrami
Apoio: Espaço das Artes e Studio Fm
Realização:
Dimenti Produções
Projeto IluMina
Coletivo Nosotras