Caro leitor. Há momento em que a fala de um terceiro atravessa tanto nossa existência que só nos resta escutar e fazer ressoar. Eis uma mãe que eu gostaria de ter. Aquela que transformou a dor em diamante e instrumento de lapidação do outro!!! Boa leitura…
Eu me chamo Inês e tenho um casal de filhxs, André e Andreia. Sou casada há 30 anos com o mesmo marido – pai dos meus filhxs – e durante muito tempo, me orgulhei de ter tido uma família clássica, uma família “de comercial de margarina”. Éramos “felizes” como manda o figurino em uma sociedade tradicionalista. De um lado, a solidez do meu casamento, do outro, filhos sempre estudiosos e aplicados, cercados de afeto e boas companhias. Filhxs que não se envolviam em encrencas e que, em obediência ao curso de seus próprios desenvolvimentos, acabaram por encontrar parceiros ideiais. Minha filha, a caçula, por exemplo, namorava um filho de uma grande amiga minha; meu filho, por sua vez, mantinha uma relação estável e duradoura com uma garota que havia conhecido no segundo grau.
As coisas começaram a mudar, todavia, em janeiro de 2012. Naquela época eu não era capaz de dimensionar, mas já havia uma poderosa transformação em curso na minha casa. Algo que mudaria nossas vidas para sempre. Para melhor! Naquele ano, minha filha embarcou para Disney: férias escolares. Quando retornou, incrivelmente mais madura, sua primeira providência foi terminar o namoro. Pois é! Sem grandes rodeios, encerrou a relação e nem se deu ao trabalho de se desdobrar em explicações. Aquilo foi o primeiro choque. Verdade que Andreia sempre foi introspectiva, calada. Contudo, conseguíamos dialogar bem e conversar sobre tudo (era o que pensava). Afinal, eu era uma mãe liberal, amiga, confidente… Não eram assim que as mães deveriam ser nos “comerciais de margarina”? Então, por que um fim de relacionamento assim abrupto? Por que ela não queira falar comigo?
Então começaram a surgir as senhas e as fechaduras em nossa relação. O segredo era a tônica e esse clima de mistério me deixou perturbada. Havia uma rachadura na nossa fachada de família e aquilo, certamente, devia ser uma coisa “errada”. Bom, um dia ela saiu e deixou o computador com o email aberto… Confesso que a curiosidade foi maior do que o pudor. Respaldada pelo invasivo dever de proteção, vasculhei em sua caixa de entrada e uma mensagem em especial me chamou a atenção… O texto estava todo em inglês (nunca fui boa inglês) o que me obrigou a ir para o Google tradutor. Foi aí que descobri o que ela tanto escondia…
A realidade me desconcertou e todo o sonho começou a ruir. Lembro que tivemos uma briga horrível, violenta. Afinal, ela era o meu “bebê”… Tinha tantos planos para ela. Projetado uma vida feliz e ela, simplesmente, estava indo para o “caminho errado”. Andreia, lésbica? A amargura invadiu meu coração e me impediu de ver o quanto preconceituosa eu era. Dizia para mim mesma: não é uma questão de preconceito, já que eu aceito os de fora. Mas minha filha? Eu devia ter errado em algum momento com ela. Devia ter sido alguma coisa na criação… E as pressões externas? Como lidar com o que as pessoas começariam a falar? O que eu falaria para elas? Na família, no trabalho?
A resposta para todas essas perguntas veio sob a forma da tentativa de suicídio. Pois é… Infelizmente, em uma tarde qualquer tomei uma cartela inteira de um remédio chamado Ablok 25 (um betabloqueador para o coração). O socorro foi imediato e essa foi minha sorte. De outro jeito, eu poderia ter morrido ou ficado em estado vegetativo. Hoje eu sei que uma pessoa que passa por uma experiência como essa já não se importa com mais nada, quer apenas acabar com a dor. Eu fui egoísta e, naquela época, não tinha condições de perceber o sofrimento que estava causando aos meus filhxs e ao meu marido
Depois da tentativa de suicídio, fui a um psiquiatra, que me receitou medicamentos. Eu chorava descontroladamente, queria me esconder do mundo, sumir!
A “recuperação” lenta e gradual durou aproximadamente um ano. Não que eu tivesse de fato superado a situação, apenas havia começado a me acostumar com a dor. Que ela “quisesse ser” lésbica, tanto pior para ela, mas que ninguém soubesse. Acreditava, inclusive, na possibilidade disso ser uma fase, como um surto de rebeldia adolescente. Então, nada de grande alarde. Tudo voltaria ao curso normal, mais cedo ou mais tarde…
Não foi bem isso que aconteceu.
Um ano depois de eu ter invadido o email de minha filha, desta vez, meu filho, que estava noivo daquela mesma garota do colegial, terminou o noivado. Já dá para imaginar o que vem depois, né? Pois é… Ele me disse: mãe eu sou gay e estou apaixonado por um garoto…
O que eu fiz???
Outra tentativa de suicídio! Seria engraçado se não fosse trágico.
Tudo de novo. Médico, terapia, choro! Precisei de mais um ano – que passei me escondendo. Me escondendo de mim inclusive. Nem queria saber o quando eu estava magoando minha família. Me sentia duplamente traída e, decididamente, só pensava no meu “sofrimento”.
Foi então que meu marido, aparentemente sempre muito machista e homofóbico, foi quem teve o discernimento necessário para reavivar nossos laços familiares.
Nesse meio tempo, André, meu filho – que sempre gostou de escrever e hoje é ator e dramaturgo – terminou seu primeiro romance “O Preceptor”. O livro, publicado pela Editora Metanóia, que, “coincidentemente”, narra a história de um relacionamento homoafetivo fala, em especial, sobre o amor uma mãe e do que essa mulher é capaz de fazer para proteger seu filho. Ele dedicou o livro a mim e, embora tenha ficado incomodada em princípio por ser um “romance gay”, confesso que a dedicatória me deixou enternecida. Está na folha de rosto do livro um delicado “para Inês, que pôde ver em seu filho um homem concreto em sua concreta humanidade”.
Uma noite faltando uns dois meses para o lançamento ele sentou na minha cama pegou na minha mão e me disse: mãe, eu preciso de você na noite de autógrafos do meu livro. Ao lado dele, estava minha filha e os olhos deles estavam cheios de lágrimas… Então eu percebi! A ficha havia caído finalmente. Não precisava de uma família de “comercial de margarina”. Era o comercial de margarina que precisava de uma família igual a minha. Uma família de verdade, coesa, onde todos tivessem liberdade de serem o que de fato eram. Onde estava o erro? Era isso, eu sabia: tinha que sair do armário junto com eles para ajudá-los a enfrentar o mundo!
No dia do lançamento, André me apresentou uma integrante do grupo de militância pró-lgbt. Um grupo de mães que lutavam por seus filhos e que ele havia encontrado na internet. Meu filho conversou com a Majú Giorgi, Coordenadora Nacional do Mães Pela Diversidade, e quando fui apresentada a ela vi que não era a única mãe de lgbt com esse propósito: lutar por meus filhxs, por todxs xs filhxs!
Aprendi no meu tempo que nunca foi uma “opção” ser lgbt e sim uma “condição”. Daí, resolvi militar para além da minha casa, escancarei para o mundo e comecei a perceber que podia ajudar outras mães, outros filhxs, para que não se machucassem tanto, para que se entendesse. Depois, vieram as Paradas pelo Orgulho LGBT – imagina a minha emoção! – os enfrentamentos políticos, os embates diários para desnudar os crimes de ódio e impedir que eles acontecessem. Hoje, estou coordenadora do Mães Pela Diversidade/Bahia, e minha função aqui é ajudar a organizar o grupo. Somos voluntárias no exercício da mais voluntária de todas as atividades já inventadas pelos seres humanos: a maternidade. Somos mães e somos mães por amor!