A frase “Antes arte do que tarde”, do escritor brasileiro Bené Fonteles, seria uma boa forma de definir como a gestão cultural no Brasil deveria, pelo menos, ser ou aparentar. O jornalista goiano José Px Silveira afirma no texto Alô Inteligência “que a cultura, aparentemente, é o ingrediente de menor dosagem nas receitas que constroem as sociedades, mas é o fermento que faz o bolo crescer”. E realmente: bolo sem fermento, não cresce; murcha. E nação sem cultura não se desenvolve; estagna.
Bolo precisa de fermento, mas se não for batido e misturado muito bem, não se transforma em uma massa firme e sólida. Como forma de esclarecer o papel da cultura brasileira (muitas vezes falha, devido ao descaso do Estado), ela pode e sempre deve ser considerada fundamental, mas nem sempre competente no que diz respeito a mudanças efetivas na qualidade de vida da sociedade.
O que deve ser questionado são os agentes de um mercado que pensa em cultura como sinônimo de lucro. Um dos autores preocupados com o tema, que aponta distorções do sistema de financiamento público à cultura, é Leonardo Brant em Políticas Culturais, Volume 1.: “A lógica que move o sistema de incentivos à cultura é perversa, pois permite que empresas recebam apoio do governo para transformar ações culturais em marketing empresarial, contrariando um importante movimento universal de repúdio ao controle da cultura pelas grandes marcas (…) O apoio do governo a ações dessa natureza leva a crer que o tipo de relação que envolve os incentivos à cultura é de ‘corrupção institucionalizada’, permitindo a transferência de dinheiro público para fins meramente privados“.
O escritor Martin Cezar Feijó comenta em seu texto As Políticas Culturais da Globalização que “de duendes a lendas pessoais, de autoajudas milagrosas a modismos de gestão, o que prevalece é a cultura do espetáculo, do entretenimento e do dinheiro, vistos como desejos espontâneos da multidão e democráticos do povo” – aqui, faço o adendo, com a clara intromissão e censura de interesses políticos e econômicos.
Mas seria muito comodismo acreditar que tal situação é irreversível. O discurso acima se insere no cenário cultural contemporâneo, mas pode ser combatido pela ideia do autor Danilo Santos de Miranda no texto Democratizar a cultura, democratizar as culturas, de resolver o problema por meio do conteúdo, isto é, mudar o quê exatamente? E para quem?
De acordo com o escritor, a cultura de elite perdeu a sua centralidade para outros modos comportamentais e sociais vigorosos como a cultura tradicional, a regional, manifestações de “raiz”, novos vocabulários, novos quase dialetos, novos padrões gestuais, novos vestuários e novas maneiras de nos relacionarmos, além da mídia onipresente, principalmente da TV aberta.
Certo. O novo centro da cultura pode ser tudo isso mesmo. Mas por quais meios ele se defende, sobrevive e é mantido? A resposta dessa pergunta, segundo o autor, só é possível de ser respondida, se aplicada a uma “segunda esfera pública, preocupada com a cultura na condição de elemento essencial, e com uma visão educativa da sociedade que transforma a existência e necessita de iniciativas e do apoio do Estado em manifestações culturais menos conformistas, fomentando a ousadia e a invenção do campo cultural”.
A sugestão do escritor Feijó, de reformular “o tempo e o modo de locomoção, conduzindo aos planos e iniciativas de descentralização de espaços culturais; insuficiência de tempo, conduzindo aos horários de funcionamento – noites, fins de semana — compatíveis com o tempo liberado das jornadas de trabalho ou frequência escolar” para que a pessoa possa e tenha tempo de ir a eventos culturais, vale a pena ser considerada.
E, ao contrário do que o sociólogo pensa, ao escrever no texto que considera a proposta bastante idealista, como ele mesmo completa, “é esse contato que irá influenciar a formação do gosto, a fixação de preferências, a expressão de admiração, a consolidação do hábito, a capacidade de discernimento crítico, a aptidão para estabelecer um diálogo com a obra ou manifestação, bem como a capacidade de pronunciar a respeito delas”.
Outra questão entre o constante desinteresse e afastamento do público em atividades culturais seria a falta de recursos financeiros para frequentar teatros, shows, museus, etc.
Quem sabe uma reaproximação viesse por meio da gratuidade ou subsidio de eventos culturais. O SESC, onde Miranda é diretor regional (em São Paulo) desde 1984, mostra que esse tipo de modelo funciona bem.
Dois exemplos recentes de exposições artísticas com preços acessíveis ou gratuitas que fizeram grande sucesso entre o público foram: “Obsessão Infinita”, da artista japonesa Yayoi Kusama, exposta no Instituto Tomie Ohtake, em julho deste ano, em São Paulo, com entrada gratuita, além da mostra do programa infantil brasileiro “Castelo Rá-Tim-Bum”, exposta no Museu da Imagem e do Som (MIS), também na capital paulista, com valor de entrada de R$10 (inteira), R$5 (meia) e gratuito às terças para menores de cinco anos, que termina em outubro de 2014.
Já o escritor Hamilton Farias em Políticas Públicas de Cultura e Desenvolvimento Humano nas Cidades, aborda outra questão bastante precisa de “que as leis culturais e de incentivo no país se esquecem das práticas cidadãs de construção da esfera pública, dos valores, do comportamento, das práticas cotidianas e modos de vida”.
É mais do que necessário aprovar uma lei que promova a inclusão cultural e não que privatize a cultura com dinheiro público. As políticas culturais precisam constantemente estimular o debate do tema.
Além de uma melhor administração e distribuição de verbas públicas para as práticas culturais, é preciso também, de acordo com Farias, um mapeamento cultural das cidades, além da visibilidade da produção local e um registro de suas manifestações culturais.
Outro exemplo que ilustra o que autor explica é a cidade de Santo André, na região do ABC paulista, que realizou um mapeamento cultural do município, descobrindo uma rica diversidade de artistas e atividades culturais.
O problema é que a maior parte das gestões sequer trabalha com a questão da identidade de cada região brasileira. É necessário, portanto, construí-la de maneira coletiva e plural.
Torna-se evidente a importância de instruir, informar e formar todos os públicos, fazendo com que se insiram em um mesmo contexto, sem deixá-los considerar que determinados objetos culturais não fazem parte de seus interesses ou do cotidiano.
O sentimento de inadequação e de distância entre baixa e alta cultura irá diminuir. Já a interação, a aproximação e o interesse em participar efetivamente de projetos e eventos culturais irão aumentar, assim como o desejo de entender, aprender e descobrir novas formas de arte. Como já dizia o dramaturgo, romancista, ensaísta e poeta brasileiro Ariano Suassuna: “arte não é produto de mercado, mas missão, vocação e festa”.
O público como crítico e não mero espectador
Não há dúvidas de que nós gostamos de bons espetáculos e precisamos disso como uma forma de elevar nossos padrões culturais. No entanto, se formos considerados apenas meros espectadores e uma platéia a ser formada, há as chances de não termos tanto desejo ao interagir com uma obra – por não nos considerarmos parte relevante dela. O público deve ser aquele “que cozinha a massa do bolo, e não um mero degustador dela”.
Quem simpatiza com a mesma ideia é o importante filósofo italiano Giambattista Vico, aqui, mencionado por Feijó no texto Vico: Educação, Arte e Cultura. O autor explica que Vico passou a questionar um método fundamentado na matemática e na geometria, que fazia com que os jovens aprendessem antes de criticar algo: “Os rapazelhos são transportados para a crítica antes do tempo e, levados a bem julgar antes de bem aprender, contra o curso natural das ideias, primeiro aprendem, depois julgam e finalmente raciocinam”.
Oferecer produtos e objetos culturais, sem deixar de lado a preocupação com a contemplação e o encantamento que eles podem ou não causar em que os admira, talvez seja um desafio não para a indústria cultural, mas sim para o cidadão comum.
Porém, a “segunda esfera”, ou seja, as políticas culturais democráticas devem procurar pelo aumento da sensibilidade e do repertorio artístico da sociedade, desenvolvendo novos valores culturais às comunidades – tão importantes para compreender os processos criativos de movimentos culturais e contrapondo-se a uma modernidade muitas vezes produtivista e pouco pluralista, como defende Hamilton Farias.
Para que a literatura aconteça, por exemplo, o leitor deve ser tão importante quanto o autor. E o mesmo vale para a cultura, nesse caso. Uma teoria interessante e que poderia servir como estímulo ao debate, ou mais precisamente, o leitor ao livro, é a Teoria da Recepção, criada por Hans Robert Jauss.
O estudo, se analisado com cuidado e transferido para esfera pública cultural, pode ser inserido em mais práticas e meios artísticos, assim como refletir no texto e no efeito que ele cria em seus leitores e na recepção deles ao longo da história.
Ainda há a relação da literatura com o processo de construção da experiência de vida do leitor (que pode ser comparada com a lógica da Teoria do Empirismo). Jauss propõe que se torne como princípio historiográfico da literatura o modo como as obras são lidas e analisadas por diferentes públicos.
Outra proposta semelhante a da Teoria da Recepção, também pensada por Jauss, além dos representantes Norman Holland, Stanley Fish, Wolfgang Iser, Roland Barthes, entre outros, se chama Reader – Response Criticism. Nela, os textos só ganham existência no momento da leitura, e os “resultados” ou “efeitos” são fundamentais para que se pense seu sentido.
Acredito que o mesmo valha para a cultura e para as artes. A qualidade e a categoria de uma obra devem ter critérios de recepção e de notoriedade em momentos e contextos históricos importantes e relevantes.
A Estética da Recepção, portanto, indica uma reforma na interpretação textual, pois considera que a literatura tenha uma relação dinâmica entre produção, recepção, comunicação, autor, obra e leitor.
Ela apresenta contribuições relevantes, pois enxerga a literatura como uma conversa entre vozes que se entrecruzam no ato da leitura, assim como deveria ser os processos de gestão cultural. O leitor e o espectador tornam-se atuantes, pois, ao interagirem com a estrutura do texto ou obra, além de sofrerem seus efeitos, agem sobre eles.
É possível concluir que o estudo é uma forma de provocação, na medida que lidera o homem à busca de novos sentidos, sensações, experiências, explicações e contestações, levando-o a uma visão mais ampla e crítica, tanto da obra criada como a de sua própria identidade.
Um exemplo que ilustra a ideia é o aplicativo para iPad que a cantora irlandesa Björk desenvolveu, chamado de “Biophilia”, em 2011, para acompanhar o disco homônimo, exposto em uma coleção permanente do Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York, na época. Björk foi a primeira cantora a lançar um app para um disco.
Paola Antonelli, curadora sênior do Departamento de Arquitetura e Design do MoMA, disse em matéria “Aplicativo de Björk fará parte do acervo do MoMA, em Nova York”, publicada no site do jornal Folha de S.Paulo em junho deste ano, que “com ‘Biophilia’, Björk realmente inovou o jeito com que as pessoas experienciavam a música, ao deixá-las participar da performance e da criação da música e dos efeitos visuais, em vez de simplesmente ouvir passivamente”.
A importância da não privatização da arte em museus brasileiros
André Malraux, escritor francês e grande entusiasta da democratização da cultura, já afirmava que: “O ministro tem por missão tornar acessível as obras capitais da humanidade, assegurar a mais vasta audiência ao patrimônio cultural e a favorecer a criação de obras de arte”.
O Secretário de Estado da Cultura, Marcelo Mattos Araújo falava, em 2012, sobre o desenvolvimento de políticas museológicas que estabelecessem bases sólidas para que instituições pudessem capacitar instalações e recursos humanos, e que cada espaço pudesse ter a sua identidade, mais precisamente em entrevista dada no seminário internacional “O Colecionismo no Brasil no Século XXI”, realizado pela revista ARTE! Brasileiros, em setembro de 2012.
A dificuldade crescente no acesso às coleções é um desafio constante. “A doação de coleções a museus é cada vez mais rara. Temos que pensar em estratégias como a constituição de fundos com a finalidade de comprar obras e reunir colaboradores que doem recursos para a compra de obras específicas”, afirmou.
O presidente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), José do Nascimento Júnior, falou em mesmo seminário, sobre a complexidade do tema do colecionismo no Brasil. Segundo ele, os estados e os indivíduos sempre colecionaram, e no mundo é comum que coleções privadas se tornem abertas ao público.
Ele chama a atenção para a importância estratégica da cultura no desenvolvimento do país. “Temos um edital chamado Brasil Contemporâneo, para que formemos coleções com artistas nacionais e que elas possam circular pelo Brasil, também fora do eixo Rio-SP.”
Ele também comenta sobre a importância da exportação da cultura regional brasileira ao mundo. “O Barroco Brasileiro, a Arte Popular, a Arte Naïf Brasileira, elas têm valor internacional importante e temos que olhar para isso de forma atenta. Temos que entender a cultura como desenvolvimento do país. Cultura gera emprego, turismo, renda. Temos aí a Copa do Mundo e as Olimpíadas e o legado cultural que vai ficar não pode ser só aeroporto, estádio”, afirmou.
O presidente do IBRAM aponta a necessidade de mudanças do governo e da sociedade para o desenvolvimento de políticas públicas que facilitem e incentivem a aquisição dessas obras. “Temos que ter um novo ordenamento jurídico, menos entraves com a Receita Federal e um novo ponto de vista em relação a incentivos. Temos que mudar a mentalidade geral da sociedade de que nem só por incentivo se coleciona. Temos que ter mudanças no processo de gestão da cultura para que possamos fazer valer nossa atual dimensão do ponto de vista econômico e do ponto de vista cultural”, encerrou.
O advogado brasiliense Sérgio Carvalho, em matéria “Coleções privadas ganham mais espaço nos museus”, publicada no site do jornal Folha de S.Paulo em junho deste ano, levou uma parte de sua coleção de mais de mil obras de jovens artistas brasileiros ao Paço das Artes, em São Paulo. “É obrigação do colecionador mostrar as suas obras. Ele acaba ocupando o espaço que deveria ser do poder público. É o Estado que deveria montar acervos. Tem dinheiro para tudo, mas não tem para a cultura.”
O aumento no número de exposições de acervos privados acaba por acontecer em um momento em que coleções particulares chamam o interesse do governo, felizmente. Em maio deste ano, quem visitasse instituições museológicas do Estado teria entrada gratuita durante um ano nos demais museus.
A ação fez parte das comemorações do Dia Internacional dos Museus e da Semana Nacional dos Museus. Outro exemplo foi o decreto da Instituto Brasileiro de Museus, órgão do Ministério da Cultura, do ano passado, onde era dada a permissão à União para declarar como bens de interesse público obras de colecionadores privados.
Por mais que haja receio de colecionadores brasileiros em mostrar ou emprestar suas obras para museus e instituições públicas, a situação pode ser outra graças ao recente decreto. A mudança tem todas as condição de se transformar em uma nova tendência – nem que seja pela vaidade dos colecionadores em exibirem as obras adquiridas em museus de prestígio e de grande importância cultural.
*Por Andressa Monteiro/Outras Palavras