E a tal emancipação feminina? Filme reitera machismo e deixa as mulheres sem perspectiva…

Recentemente, ao esperar uma carona, o meu MP3 havia descarregado e eu estava parado, aguardando o meu contato, enquanto num carro próximo, alguém escutava um pagode romântico que pelo que me recordo, foi hit do final da década de 1990. A letra dizia que “toda mulher já nasce pra morrer de amor”. Inicialmente a canção me remeteu ao período, auge da minha adolescência, mas depois as memórias foram se distanciando, para dar espaço ao processo interpretativo da canção.

Foto: Divulgação

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Tudo bem que a letra fala basicamente sobre o clichê da mulher excessivamente romântica, passional, dotada da capacidade de morrer de amores por causa de um homem. As ilações literárias surgiram numa velocidade extrema. Salva as devidas proporções, Lucíola, personagem do romance homônimo de José de Alencar, não morreu por conta do excesso de amor fornecido aos homens? Uma prostituta que precisa morrer para pagar os seus pecados antes do surgimento do “amor verdadeiro” em sua vida.

O mesmo escritor, alguns anos depois, escreveu Senhora, uma obra que emancipa a mulher até determinado momento, para depois desbanca-la e coloca-la em seu devido lugar, ou seja, a posição de submissa ao homem. Daí em diante já fui endereçado para o horroroso enredo de Lua Nova, segundo capítulo da Saga Crepúsculo. A mocinha Bella, apaixonada pelo vampiro insosso Edward, faz de tudo para atrair à atenção do seu amado, até se jogar de um penhasco, algo no mínimo, grotesco, se é que este conceito se encaixa nesta situação.

Tanto já se discutiu e escreveu sobre a condição feminina, mas parece que a sociedade ainda não está preparada para apresentar um olhar mais apurado para a questão. Essas indagações todas surgiram após assistir ao irregular Relação em Risco: Confissões de um Conselheiro Amoroso, dirigido por Tyler Perry. Tive acesso à produção na semana passada. Uma grande amiga me ligou e disse que estava transtornada com os rumos da produção, pois de acordo com o relato, o filme era inicialmente envolvente, mas se perdia do meio para o final, ao reiterar estereótipos e apresentar problemas no que tange às representações da mulher na sociedade contemporânea.

Essa conversa se estendeu para um grupo do whatsapp que divido com duas outras amigas, num círculo de diálogos muito parecido com o que fomos apresentados durante as seis temporadas do intenso e fabuloso mundo de Sex and the City. A conversa se desdobrou em convocação para uma sessão de cinema na casa de uma das pessoas envolvidas no papo virtual, com intuito de exibição seguida de debate.

A garota foi tão incisiva que o grupo decidiu levar a situação a sério. Inicialmente monótono, o filme foi envolvendo a todos e nos fazendo se identificar com algumas características de determinados personagens. A trama, extremamente novelística e mal desenvolvida, promete alavancar a condição da mulher, mas se perde em meios aos escorregadios clichês e enraíza ainda mais o fosso do determinista que põe a mulher na condição de pecadora, caso saia da linha a qualquer instante do seu relacionamento amoroso.

O filme nos apresenta Judith (Jernee Smollett-Bell), uma terapeuta insatisfeita com o casamento e com o trabalho. Ela possui mestrado no currículo, é bastante culta, mas não se sente valorizada como deveria (e não estamos no Brasil, hein?). O seu esposo, interpretado por Lance Gross, apesar de extremamente atraente (e bota atraente nisso), não lhe dá a atenção devida. É um farmacêutico distante, pouco ligado nas necessidades da sua esposa.

Judith trabalha numa agência de casamentos e logo vai entrar num perigoso jogo com o galanteador Harvey (Robbie Jones). Não demora muito para a moça cair no envolvente jogo de sedução do jovem rapaz, escapulida que vai lhe custar muito caro. É nessa parte que entram os “determinismos” do filme: “respeite o seu marido”, “não falhe no casamento”, “entenda que ele é o homem e você é a mulher”, “as necessidades são distintas”. Sabe todo esse repertório que oriundos das nossas relações cotidianas? Pois então: eles estão presentes, direta e indiretamente, no filme.

Com 111 minutos de duração, a produção foi lançada em 2013 no mercado de DVD. No que tange aos aspectos técnicos, Relação em Risco possui estrutura de telefilme, ou seja, produções com roteiro construído para os possíveis cortes relacionados aos comerciais. O roteiro é até interessante, mas recheado de diálogos inúteis. O argumento começa bem, com a promessa de edificar um panorama de liberdade para a mulher, mas o que temos do meio para o final é o velho e sádico apego ao crime e castigo, numa pegada extremamente próxima ao horroroso Deus Não Está Morto.

Se você traiu o seu marido que não te valoriza, pouco se importa com os seus questionamentos e desejos, você precisará pagar por isso. Não há redenção ou escapatória. O homem, assim como o que se convencionou a dizer da “vida real”, é ferido (coitadinho) pela escapulida da esposa, mas consegue se reerguer e construir uma nova família, enquanto para a mulher, sobra a punição: envelhecer mais rápido, ficar sozinha cantando no coral da igreja, fazendo bordado ou dedicando-se a coisas que não sejam materiais e mundanas.

Apesar de reforçar estes problemas suponho que os envolvidos não estejam tão equivocados. É bem possível que eles estivessem imbuídos pelo discurso machista e opressor que vemos em nosso cotidiano. Para confirmar isso, basta acessar as redes sociais e algumas matérias jornalísticas referentes ao polêmico tema da prova do ENEM deste ano. Há vídeos bizarros questionando as teorias de Simone de Bevouir, além de relatos escabrosos de que a violência contra a mulher não existe, dentre outros absurdos.

Seja no campo simbólico ou na crueza da relação física, as mulheres ainda tem muito chão para trilhar. Filmes como Relação em Risco surgem para provar que a tal emancipação feminina está no campo da teoria, pois as lutas são diárias e muitas vezes invisíveis: é o assédio pela roupa curta, o desmerecimento no ambiente de trabalho, é a irritação por algum problema pessoal confundido com TPM ou o destino fatídico após falhar no casamento.