Nesta quarta-feira (29), a capital baiana comemora o seu aniversário de 474 anos. Em homenagem a esta data especial, a prefeitura anunciou a programação de diversos eventos que acontecerão na cidade durante a semana, como o show de Ivete Sangalo, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Luedji Luna no dia 2 de abril, no Farol da Barra. Que Salvador é um ponto demasiadamente rico em termos de cultura e diversidade todo mundo já sabe, mas é sempre bom resgatar as memórias das origens do que conhecemos como a cidade de Salvador e porque ela é como é hoje.

Para tal fim, o Catado de Cultura trouxe uma reportagem especial revivendo as raízes africanas presentes no solo brasileiro, em especial o soteropolitano.

 A importância de relembrar o passado através da história

Há quase 500 anos, a Baía de Todos os Santos recebia as embarcações de Tomé de Souza para fundar a Cidade de São Salvador, a mando do Rei de Portugal, Dom João III. Não só o entorno promissor com o plantio da cana-de-açúcar, mas a localização geográfica estratégica definiu Salvador como a primeira capital do Brasil, apresentando um dos principais portos do continente americano, onde muitos escravos e mercadorias foram comercializados.

Apesar de tudo, os escravos conseguiram não perder completamente sua essência. A cultura afro-brasileira é uma das que mais se destacam no cenário do sincretismo religioso no Brasil, apresentando diversos exemplos vivos do que é o patrimônio cultural do continente negro amadurecido ao longo de séculos de convivência, que resultou numa forte miscigenação. Os traços da cultura africana são mais evidentes na Bahia, especialmente em Salvador. 

Foi na Bahia que o primeiro templo de Candomblé foi fundado, religião essa que foi introduzida pelos africanos e que foi mantida pelos seus descendentes. Como forma de escapar da imposição da Igreja Católica, que julgava o ato como criminoso, eles cultuavam seus Orixás omitindo-os em santos católicos, o que fez surgir a fusão das duas religiões, com a reinterpretação de seus elementos.

Outras influências são vistas também na culinária, com a adoção do azeite de dendê, e na música, com a arte da capoeira – desenvolvida pelos escravizados –  as danças dos rituais religiosos e o uso de instrumentos como o berimbau, o agogô e ainda o batuque inconfundível dos tambores e bumbos de blocos como o Olodum.

“Roda de Capoeira”, do pintor alemão Johann Moritz Rugendas, 1835

As algemas da escravidão 

Escritor do best-seller “1808”, o primeiro da trilogia sobre o Brasil Império que inclui “1822” e “1889”, Laurentino Gomes lançou em 2019 o primeiro volume de sua nova sequência de livros, só que, dessa vez, enfocando o período brasileiro da escravatura. “Se você quiser entender o Brasil em uma dimensão mais profunda, precisa estudar a escravidão. Tudo que fomos no passado, o que somos hoje e que nós gostaríamos de ser no futuro tem a ver com a escravidão”, afirmou numa entrevista ao EL PAÍS.

O ponto de partida para essa história é o século XVI, quando Portugal iniciou o processo colonizatório na América. Na época da exploração do pau-brasil, o comércio ainda era realizado por meio do escambo, isto é, pela troca direta de mercadorias entre os nativos indígenas e os portugueses que aqui chegaram. Entretanto, em 1534, o rei Dom João III implantou o sistema de capitanias hereditárias, lotes de terra os quais eram entregues aos donatários, que ficavam responsáveis pelo desenvolvimento econômico dessas capitanias, com os crescentes engenhos de produção de açúcar a partir da cana.

Os indígenas foram a principal mão de obra dos portugueses até meados do século XVII, quando, de fato, os escravos africanos começaram a tornar-se a maioria. Os primeiros africanos começaram a chegar ao Brasil por volta da década de 1550, embarcados nos chamados de navios negreiros. Na verdade, amontoados é a palavra correta. 

As condições nas quais essas pessoas tinham que enfrentar para cruzar o oceano eram as mais desumanas que se pode imaginar. Muitos não sobreviveram à viagem, vítimas de doenças, de maus tratos e da fome. Já aqueles que sobreviviam eram vendidos como se fossem mercadorias. O valor dos escravos era determinado pelo sexo, idade e condição dos dentes, tal qual se avaliavam os animais na hora da compra.

Navio Negreiro

Desde o século XV, os portugueses possuíam feitorias na costa africana, mantinham relações com povos africanos e realizavam a compra desses indivíduos para escravizá-los. As feitorias eram basicamente entrepostos comerciais onde os portugueses concentravam as mercadorias de determinada região, com construções fortificadas para garantir a defesa dos seus territórios de invasores. 

Apesar do fato de que já existia escravidão entre os próprios africanos, que obtinham prisioneiros de guerra, foram os europeus que tornaram essa prática num negócio lucrativo em larga escala.

Os europeus, considerando-se pertencentes a uma raça superior, atribuíam o trabalho braçal aos seres que chamavam de selvagens e inferiores, que precisavam ser “domesticados”. A minoria branca, a classe dominante socialmente, justificava essa condição através de ideias religiosas e racistas que afirmavam a sua superioridade e os seus privilégios. As diferenças étnicas funcionavam como barreiras sociais. Realidade esta que, infelizmente, não mudou muito no passar dos séculos.

Criança com sua Ama de leite, 1860

Ao longo de mais de 300 anos, cerca de 4,8 milhões de africanos desembarcaram no Brasil. Suas rotinas eram marcadas pela violência e humilhação, no intuito de fazê-los temer pelos seus senhores e se conformar com sua posição de escravo. Viviam acorrentados para evitar fugas, não tinham direitos, não possuíam bens e constantemente eram castigados fisicamente em público. 

Além das condições miseráveis na senzala, eram proibidos de praticar sua religião ou qualquer outra manifestação cultural da África, sendo batizados com nomes portugueses e forçados a seguir o catolicismo e aprender o português.

 Os negros escravos, por sua vez, não aceitavam tudo de maneira passiva, eles lutaram pela sua dignidade. A história da escravização africana no Brasil ficou marcada por diferentes formas de resistência que incluíam a desobediência, as fugas individuais e coletivas, as revoltas, a formação de quilombos, entre outros. 

Os quilombos eram comunidades semelhantes às organizações comunitárias existentes na África, onde viviam em liberdade, praticavam sua cultura, falavam sua língua e exerciam seus rituais religiosos. O mais conhecido foi o de Palmares, localizado na atual região do estado de Pernambuco, que foi liderado por Zumbi, um grande símbolo da luta pelo fim da escravidão.

Estátua de Zumbi dos Palmares, localizada no Centro Histórico de Salvador

Nem mesmo com a independência política do Brasil, em 1822, o tráfico de escravos e a escravidão foram abalados, pois as estruturas sociais, políticas e econômicas vigentes ainda eram favoráveis aos senhores de engenho. Naquele momento, o único interesse era a libertação do domínio português que impedia a livre expansão dos negócios.

A lei n. 581, de 4 de setembro de 1850, chamada Lei Eusébio de Queirós, enfim estabeleceu medidas para a repressão do tráfico de africanos no Império. Sua promulgação é relacionada, sobretudo, às pressões britânicas sobre o governo brasileiro para a extinção da escravidão no país, uma vez que o sistema não condizia com o cenário de novos parâmetros criados pela Revolução Industrial e pela vida moderna.

De 1865 em diante, as campanhas abolicionistas só se intensificaram. Outras leis, como a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885), foram sancionadas. No fim, não como um ato de benevolência da monarquia, mas sim resultado das pressões sociais e políticas e do engajamento da população, principalmente nas áreas cafeeiras, a Lei Áurea foi então assinada no dia 13 de maio de 1888, abolindo definitivamente a escravidão.

Venda de escravos no Rio de Janeiro

O Brasil foi o último país do Ocidente a abolir o trabalho escravo. Este triste capítulo da História do país não pode ser apagado, e muito menos esquecido. As cicatrizes deixadas são vistas em toda parte. O momento pós-emancipação não teve nenhuma preocupação com a inclusão desses indivíduos na sociedade e, até hoje, vemos o reflexo disso tudo. Um exemplo é a imensa parte da população negra brasileira que vive em comunidades – ­­mais conhecidas como favelas – além do estigma criado acerca de quem lá mora. 

Como disse em 2018 Lilia Moritz Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da USP e autora, entre outros livros, de O Espetáculo das Raças, As Barbas do Imperador, Racismo no Brasil e Brasil: uma biografia, “O que vemos hoje no país é uma recriação, uma reconstrução do racismo estrutural. Nós não somos só vítimas do passado. O que nós temos feito nesses 130 anos é não apenas dar continuidade, mas radicalizar o racismo estrutural”.

 

Curiosidade Histórica

O Pelourinho, centro histórico da capital baiana, hoje é um centro cultural, turístico e gastronômico, mas não foi sempre assim, pois ali já foi palco de sofrimento no período da escravidão. Muitos turistas e até cidadãos locais não sabem, mas “Pelourinho” é o nome dado à coluna de pedra com argolas de bronze onde escravos eram amarrados para serem torturados em público. 

Na época colonial, a região passou a ser ocupada por casarões de arquitetura europeia, palacetes e belas igrejas, que eram o símbolo da riqueza dos donos de terras conquistadas a partir do ciclo da cana-de-açúcar.

“Aplicação do Castigo do Açoite”, do pintor francês Jean-Baptiste Debret