O relatório da CPI da Ocupação das Terras Públicas na Amazônia, em 2001, conhecida como CPI da Grilagem, informou que, de 157 milhões de hectares do território do Estado, 55 milhões estavam sendo grilados. Os cartórios de Humaitá, Manicoré e Canutama foram identificados como “contumazes na prática de ilícitos registrais”. Em Manicoré foram cancelados 682 mil hectares, ou 12% da área. Em Canutama, vizinha de Porto Velho, por onde se chega de carro a Humaitá, foram cancelados 8,8 milhões de hectares, ou 368% da área do município. É que as grilagens formam um território paralelo, virtual, onde as terras se sobrepõem umas às outras.

Foto: Ariel López/Flickr

A chefe da unidade avançada do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Humaitá, Maria Terezinha Leite, conta que o distrito de Santo Antônio do Matupi, um dos pivôs da crise em Humaitá (embora pertença a Manicoré), surgiu de um assentamento, no lado esquerdo da Transamazônica, rumo a Apuí. Essa área de 34.534 hectares está hoje totalmente irregular.

Os assentados foram deixando os imóveis. Quantos? Não se sabe exatamente. Das 527 parcelas, de até 60 hectares, ela estima que apenas 50 – menos de 10% – ainda estejam com os beneficiários originais. Ocorre que as áreas de assentamento não podem ser vendidas. “Tem lote que já passou por cinco donos”, conta ela. E o Incra precisa notificar todos os atuais “proprietários”.

Mas ela notificou só 20 deles. Porque, por algum motivo, eles foram à sede do Incra e Terezinha aproveitou a deixa. E por que ela não notifica os demais? Porque não há infraestrutura.

Mais especificamente, não há segurança. As notificações em Matupi precisariam do apoio da Polícia Federal, pois os servidores têm medo. “Não dá para entregar uma notificação de que a pessoa tem de sair em 15 ou 30 dias sem a presença da polícia”, explica Terezinha. Os 20 que receberam a notificação simplesmente não se manifestaram. E ficou por isso mesmo. “Nesse caso a responsabilidade é da Divisão de Assentamentos, em Manaus”, diz ela.

Chefe da unidade há dez anos, a servidora exibiu um mapa que mostra o assentamento rodeado por terras da União. Mas o distrito cresce e pretende se tornar um município. Somente desde 2010 a área está sendo georreferenciada, diz. Ela também conta que, em 2005, houve um problema grande com invasões de terra, acima de mil hectares cada, na vizinha Canutama. A Polícia Federal conseguiu coibir. A maioria das pessoas era de Rondônia.

Em doutorado defendido na Universidade de São Paulo, em 2012, a pesquisadora Viviane Vidal da Silva concluiu que o assentamento do Incra era o principal responsável pelo desmatamento na região. Ela observou que cada lote tinha desmatado mais de 20% da floresta, o limite na região. Motivo principal, a substituição da agricultura pela pecuária. Os Tenharim dizem que o “180” tem até pista de pouso clandestina, e ninguém faz nada. O mesmo aconteceria no km 160 da Transamazônica.

Dias antes da entrevista com Terezinha, na esquina do Incra, na Avenida Transamazônica, um lobista identificara-se para o repórter como jornalista. Ele contou ter trabalhado na área durante três décadas. Hoje, mexe com regularização de terras. Contou muitas histórias, reproduziu muitos boatos. Dois dias depois, foi sincero em relação ao seu trabalho:“Vou de terno, tudo bonitinho. O cara diz que não pode resolver. Pergunto que horas ele sai e chamo para uma cervejinha, no fim do expediente. Coloco dinheiro na mão dele. Ele libera. Aqui não tem Estado!”

Ou tem: em Santo Antônio do Matupi, uma placa anuncia a melhoria das vias da comunidade, por R$ 13,7 milhões. Com a assinatura do governo do Amazonas e financiamento do Banco do Brasil.

*APública

**Não só no Sul da Bahia os conflitos de terra envolvendo indígenas têm se intensificado nos últimos anos, em proporções extremas de violência. Reportagem especial da Agência Pública, que o Bahia na Lupa mostrará em uma série de cinco partes, retrata que a bestialidade contra os indígenas no Brasil é antiga como a grilagem de terras