É no mínimo curioso, em plena ressaca da“Black Friday” – um dia exemplar sobre a exaltação ao capitalismo –, falar sobre as teorias de um economista que vem causando furor ao redor do mundo, por conta do seu livro O Capital no Século XXI, que sugere, entre outras coisas, a tributação de grandes fortunas, o combate à desigualdade econômica e à concentração da riqueza nas mãos de poucos. Ou seja, um enfrentamento direto ao poderoso 1% global.
O professor e pesquisador da École d’Économie de Paris, Thomas Piketty, foi apelidado de “Karl Marx do século XXI”, alcunha a que ele responde com muito bom humor e irreverência, pois, ao contrário do que alguns textos que circulam na rede dizem, sua obra não é anti-marxista e nem pró-marxista. Aliás, é justamente este antagonismo que o autor rejeita já nas primeiras linhas de seu monumental trabalho, já considerado a obra do ano nos Estados Unidos e na Europa e agora recém-lançado no Brasil pela editora Intrínseca.
O economista inicia sua tese abordando o “apocalipse marxista” de acúmulo infinito de capital, o que, para ele, não se concretizou. Porém, ressalta que a crítica de Marx é perfeita até os dias de hoje, porque, apesar de não termos um acúmulo infinito de capital, temos cada vez mais pequenas famílias detendo quase a metade da riqueza global, ou seja, o dito “apocalipse” se dá por etapas.
Com pouco mais de 500 páginas, O Capital no Século XXI é dividido em quatro partes. A primeira e a segunda tratam da questão da renda, produção, capital e suas metamorfoses ao longo da história, principalmente a partir da Revolução Industrial (1700). Neste momento, Piketty faz uma verdadeira genealogia da questão de renda, início do acúmulo de capital e, sobretudo, um extensivo levantamento sobre as políticas de salário com foco na França, Reino Unido e Estados Unidos, pois, de acordo com o autor, são os países com os registros históricos de renda mais antigos e, portanto, muito úteis para uma leitura a respeito da história do capitalismo global e suas problemáticas.
Após todo o levantamento histórico a respeito da história da renda e suas oscilações pelo mundo, o livro torna-se particularmente interessante nas partes 3 e 4. Não que os levantamentos históricos não o sejam – muito pelo contrário –, mas é justamente da metade para o fim que Thomas Piketty levanta os debates que tomam conta dos espaços políticos da contemporaneidade: desigualdade, concentração de renda, o rentista enquanto inimigo da democracia, a desigualdade mundial da riqueza no século XXI, a questão das famílias detentoras da riqueza global, a crise de 2008 e o retorno do Estado e, por fim, a taxação e regulação da riqueza global.
Um diálogo com o nosso tempo
Talvez o que mais tenha atraído a atenção para a obra de Piketty, que esteve no Brasil durante esta semana, além de todo o seu apuro acadêmico resultante de 15 anos de pesquisa, seja o fato dele estar mais interessado em fazer e contribuir para um debate público a respeito de novos mecanismos democráticos e de como melhorar os já existentes.
Nota-se também que o autor corre por fora ao não descartar teses liberais e marxistas. Ao contrário, baseado em um levantamento histórico, busca mostrar como Karl Marx, David Ricardo e Simon Kuznets contribuíram, cada um em seu tempo e a posteriori, para a construção da narrativa do capitalismo até meados do século XX, quando outros autores ficaram mais preocupados em encontrar vácuos e equívocos nas teses marxistas e não-marxistas.
O economista faz o percurso dos três autores citados e se propõe a estabelecer uma narrativa para o capitalismo do século XXI. Para o autor, o mundo do capital será melhor e mais justo a partir do momento em que os governos forem mais transparentes; as fortunas, taxadas; as políticas de distribuição de renda, aprofundadas, e quando a inserção de uma fração cada vez maior de pessoas na escola e nas universidades se tornar realidade. Somente assim, podemos pensar um Estado social, de fato, para este século.
Veja a entrevista de Piketty à Revista Fórum:
Fórum – Primeiramente, a pergunta inevitável: o título do livro. Você mesmo escreveu, ao final da introdução, que não seria exatamente correto falar sobre o “capital no século XXI”, ainda que em 2013 tenha ganhado o apelido de “o novo Karl Marx”. O que achou de tudo isso?
Piketty – Claro que é um tipo bem diferente de livro do que o de Marx, que apareceu em 1867. O meu foi feito mais de um século e meio depois, então, obviamente é diferente. O meu livro é mais sobre a história da renda e riqueza, mas claro que fui beneficiado por todas as experiências históricas anteriores, e isso me deu uma grande vantagem. Acredito que O Capital no Século XXI é o título certo para o livro. Claro que ajudou a atrair leitores, mas o que quero dizer com esse título é que tentei fazer um estudo sobre o capital sob uma perspectiva histórica para dentro do século XXI. Tentei estudar o capital como um objeto histórico. E um livro chamado A História do Capital do Século XVIII ao Século XXI, seria um título muito grande e não tão legal [risos].
Mas o livro é sobre isso mesmo, um estudo sobre as transformações históricas da estrutura do capital, de propriedade e da desigualdade entre grupos sociais por conta dessa estrutura. De uma perspectiva mais política e ideológica, compartilho com Marx e com todos os economistas do século XIX preocupações com a desigualdade e a longa jornada da evolução na distribuição de renda. Mas acredito em propriedade privada e forças do mercado, só que penso que devemos encontrar maneiras e instituições públicas democráticas para regular essas forças e usá-las para o interesse comum – e isso envolve impostos progressivos sobre propriedade privada e propriedade pública em alguns setores, governos mais participativos, novas formas de organização. A solução seria bem diferente da extinção da propriedade privada, da qual Marx falava.
Fórum – Ainda sobre Marx, você escreveu que o “apocalipse marxista” da acumulação infinita de capital não se concretizou. Mas atualmente, em países como EUA, Brasil e outros, existe a tendência da cada vez maior concentração de riqueza nas mãos de poucos. Isso não confirmaria o “apocalipse” de Marx?
Piketty – Bem, existe uma evolução que está indo nessa direção e que de fato pode ser um pouco assustadora se você projetá-la para um longo período. Mas suponho que a diferença quanto à previsão apocalíptica de Marx é que, em algum momento, o capitalismo cavaria sua própria cova, pois ao passo em que se acumularia mais e mais capital, os lucros cairiam para zero e isso seria, em última análise, catastrófico, colocando um fim ao processo.
E dessa parte eu discordo, pois, de um ponto de vista puramente econômico, isso [a acumulação de capital]pode continuar para sempre. Não existe razão para que os lucros caiam para zero, porque enquanto você tem algum tipo de produção, conseguirá manter a taxa de lucros acima do zero.
Fórum – Como que esse processo de acumulação de capital pode prosseguir, com o chamado “1%” concentrando cada vez mais a riqueza mundial – mesmo que não ponha um fim ao capitalismo? Em algum momento não deve surgir um obstáculo que exija uma mudança drástica no sistema econômico?
Piketty – Certamente, pode gerar uma crise política e democrática, mas de um ponto de vista puramente econômico, a concentração de riqueza e a desigualdade de renda podem se estabilizar em um nível bem alto. A elite poderia ser suficientemente persuasiva ou usar do aparato repressivo, em alguns países, para convencer o resto da população a aceitar isso, podendo então continuar para sempre. Em O Capital, de Marx, o olhar básico é o fim do lucro; no meu livro, se você quiser resumir tudo em um único olhar, você pode ter “r > g“ (renda/capital sendo maior do que a taxa de crescimento da economia) para sempre. Então, se a taxa de retorno do capital é de 5% e a taxa de crescimento é de 1%, isso pode continuar para sempre, pois é necessário para os ricos investirem apenas um quinto desse retorno – eles podem consumir os outros quatro quintos e esse ciclo pode se perpetuar para sempre.
Obviamente, dos pontos de vista social e democrático, pode ter problema, pois você terá uma desigualdade extrema, com grande parte da população apenas trabalhando para os muito ricos, e isso poderá acarretar em uma crise política. A má notícia é que não podemos contar apenas com as forças econômicas para por um fim a isso. A boa é que há diferentes futuros possíveis – a solução deve vir de forças políticas.
Fórum – Um exemplo dessa “aceitação” pode ser visto depois da crise financeira de 2008, com a desigualdade dentro dos EUA aumentando e batendo recordes a partir de 2010.
Piketty – Exatamente, a desigualdade voltou a crescer. Chegou a níveis até maiores do que no passado. Veja bem, não estou dizendo que isso continuará crescendo para sempre, provavelmente em algum momento irá se estabilizar. O que estou dizendo é que a desigualdade pode muito bem se estabilizar em um nível muito alto por muito tempo. E isso é um pouco parecido com o que aconteceu antes da Primeira Guerra Mundial nos países europeus, cujos níveis de desigualdade eram altos e poderiam ter se mantido nesse patamar por um bom tempo. Claro que algumas pessoas acreditam que a guerra em si foi parcialmente uma consequência da grande desigualdade e da grande tensão social entre os países europeus à época; o aumento do sentimento de nacionalismo também foi uma consequência da grande desigualdade daquele tempo.
Fórum – E, por outro lado, as duas guerras mundiais agiram como um equalizador dos níveis de renda.
Piketty – Certo, e esse é um lado irônico da história que observamos no século XX: esses grandes choques que, no final, foram um grande fator para reduzir a desigualdade. Mas mais ainda do que as guerras em si, acho que as novas políticas adotadas por esses países no pós-guerra, ou até mesmo a revolução bolchevique na União Soviética, induziram as elites ocidentais a aceitar uma variedade de reformas sociais e fiscais que até então recusavam e que contribuíram para a redução da desigualdade.
Fórum – Nisso que tange às guerras mundiais como fatores para a diminuição da desigualdade por determinado período na Europa, o caso da Suécia chamou a atenção, pois era um país extremamente desigual há cem anos e se manteve neutro em ambas as guerras. Ou seja, teoricamente não teria sofrido os mesmos efeitos de estagnação econômica que sofreram os países que de fato guerrearam. Sendo hoje um país-modelo, a Suécia é uma exceção à regra ou existem outras razões?
Piketty – É verdade que, no Pós-Guerra, em alguns países, a desigualdade aumentou, mas na maioria dos países a redução da desigualdade continuou nos anos 1950 e 1960, principalmente por conta das políticas socioeconômicas implantadas por conta do enorme choque que a guerra causou. Além disso, as instituições, claro, importam também. Na Suécia, eles implantaram políticas igualitárias que contribuíram para isso.
Fórum – Na última parte do livro, você aborda duas questões que estiveram muito presentes no recente debate eleitoral no Brasil: a maior presença do Estado na economia e a taxação de grandes fortunas. Quando uma das candidatas à presidência defendeu propostas semelhantes, e foi chamada de “maluca”. Por que essas duas questões causam tanto pânico em setores liberais da política?
Piketty – [Risos] Bem, posso entender porque a elite brasileira não quer pagar mais impostos, mas acho que se olharmos para os fatos, é que os impostos no Brasil não são progressivos – e de certa maneira são muito regressivos –, pois há grandes impostos sobre o consumo e impostos indiretos. Acho que o certo seria diminuir tais impostos [indiretos] e aumentar os impostos diretos e progressivos sobre a renda, além dos diretos sobre a riqueza e propriedade. Sei que muitos reclamam de impostos no Brasil, mas eles na realidade são baixos quando comparados com os EUA, Reino Unido ou Alemanha – e sabe, estes não são países muito de esquerda.[Angela] Merkel e [David] Cameron não têm governos esquerdistas [risos]. Ninguém dentro de outros partidos nesses países pede que os impostos abaixem. Por que isso? Eles são “esquerdistas malucos”? Não.
Acho que devemos ser menos ideológicos e mais práticos sobre a tributação. É possível encontrar diferentes maneiras de organizar o capitalismo, é possível regular o capitalismo de maneira mais progressiva no que concerne à taxação. Reino Unido e Alemanha são países bem capitalistas, estão indo muito bem e são mais ricos que o Brasil – que é um país com uma alta desigualdade, parcialmente por conta do fato de seus impostos não serem progressivos. Em muitos países extremamente ricos a taxação sobre a riqueza é maior do que a taxação sobre o consumo, e são países capitalistas que são mais competitivos que o Brasil. Acredito que existam muitas desculpas ruins para a elite não aceitar isso, mas do ponto de vista econômico e prático, não acho que eles tenham razão.
Fórum – Não só a elite, a classe média também acha que pagamos muitos impostos.
Piketty – Acho que as pessoas no Brasil pagam altos impostos indiretos. É necessário mostrar para a classe pobre e classe média que os impostos diretos sobre propriedade e riqueza podem ser usados para diminuir os impostos aplicados sobre eles – de consumo, da conta elétrica etc. Mas as classes mais altas tentam convencer que tais impostos recaíram sobre eles. Então, o outro lado tem de ser persuasivo.
Fórum – Você escreveu sobre as políticas educacionais como ferramentas eficazes para o combate à concentração de renda e distribuição de renda, e que hoje há um problema geracional e de renda no aceso à universidade, que se torna cada vez mais cara. No Brasil, possuímos alguns programas que destinam bolsas de estudos em universidades privadas a estudantes pobres. Qual a sua avaliação sobre um programa como esse?
Piketty – Não sei o bastante sobre o sistema brasileiro, mas o que entendo é que existe uma estranha situação em que os estudantes com mais vantagens econômicas tendem a ir para escolas particulares, e quando chegam à universidade, vão para as públicas. Na França, temos algo semelhante, não completamente, mas semelhante, em que os grupos com mais vantagens econômicas vão para instituições mais elitistas, que por acaso recebem mais financiamento público, do que uma universidade “normal”, da qual os grupos com menos vantagens tendem a usufruir.
Em última análise, o financiamento público na educação tende a reforçar a desigualdade entre grupos sociais e isso é de fato uma situação bem estranha. Nos EUA, por exemplo, o caso é ainda mais extremo, com mensalidades muito altas nas universidades privadas, tornando a desigualdade educacional maior entre grupos sociais. Se observarmos a renda média dos pais dos alunos que vão para Harvard, eles estão entre os 2% no topo da pirâmide econômica do país. É quase como se tivessem sido selecionados dentro desse grupo social – o que não corresponde muito aos conceitos de meritocracia. Existe muita hipocrisia nos EUA, mas isso ocorre também no Brasil e na França, dentro do sistema educacional que supostamente deveria ser mais igualitário, mas na prática pode reforçar a desigualdade.
Sei que para os pais de famílias ricas pode ser difícil entender que “talvez” seus filhos estejam sendo beneficiados pelo sistema mais do que deveriam, quando comparados com outros grupos na sociedade, mas é necessário colocar isso na mesa para discussão. Pois se cada um for defender seus próprios interesses, isso não vai funcionar.
Fórum – Falando um pouco mais sobre a Europa, o que parece acontecer nesse momento é que os problemas econômicos derivados de 2008 parecem ter reflexos na política dentro da União Europeia (UE), onde os países mais afetados pelas políticas de austeridade – Portugal, Espanha, Grécia – testemunham o surgimento de partidos políticos mais à esquerda. Enquanto isso, os países que “forçaram” essas políticas – principalmente Alemanha e França – estão guinando para a extrema-direita. É de fato possível perceber isso dentro da UE?
Piketty – A Espanha e a Grécia estão se movendo para a esquerda, pois tiveram governos de direita durante a crise. Já a França está indo para a direita por ter um suposto governo de esquerda. Isso às vezes é apenas uma reação de descontentamento em relação ao governo. Mas falando de maneira generalizada, a França e Alemanha – independente do partido político no poder – foram demasiadamente egoístas aos outros países europeus, quando disseram: “ok, temos juros baixos em cima de nossa dívida pública, e não temos interesse em ajudar Espanha, Grécia e Itália, com suas dívidas públicas. O problema é deles”.
Acho que isso foi uma decisão terrível, porque no final do dia era um problema de todos [os países da União Europeia]. Isso gerou uma má situação para todos por conta dessa atitude egoísta, a política de austeridade foi um desastre, as taxas de crescimento estão muito baixas em todos os lugares – incluindo na Alemanha –, a Zona do Euro inteira não está funcionando e acho que isso é um grande perigo, pois aí vemos movimentos extremistas – particularmente, refiro-me à extrema-direita na França. Porém, para mim, não é suficiente culpar a Alemanha, acho que os países afetados devem apresentar propostas de como democratizar mais o Parlamento Europeu para evitar crises como essa – evitando também o ressurgimento do nacionalismo extremista. Seria um enorme erro para a esquerda adotar o discurso radical e ir nessa direção, pois a direita é muito melhor em ser extremista.
Fórum – Lendo O Capital no Século XXI, a impressão que fica é a de que você está bastante interessado em fazer um debate acadêmico com outros autores de outras áreas das Ciências Sociais – o seu livro e as ideais ali escritas são bastante atuais e têm muito em comum com as falas de Antonio Negri, David Harvey e até mesmo de organizações como o Podemos, na Espanha. É correto afirmar isso?
Piketty – Você está certo. Acho que existe bastante coisa em comum com esses autores, inclusive com o Podemos da Espanha, e estou tentando contribuir para o debate com o livro. Mas há também diferenças. Como no caso do Podemos e dos novos partidos de esquerda na Europa, acho que os meus desacordos com eles vão no sentido de que, na minha opinião, nós devemos acreditar na democracia em um nível europeu. Pois você não pode desconfiar de todos: da União Europeia, da democracia, do Euro – o que sobra para nós? Acho que é importante pensar como as instituições democráticas, como um todo, podem funcionar.
Não podemos simplesmente reclamar sobre a desigualdade, mas sim pensar sobre propostas concretas e como melhor organizar nossa economia, nossa democracia. É importante encontrar também novas formas de debate para regular a organização econômica. Mudar as instituições democráticas é, de certa maneira, revolucionário. Acho que, se não tivermos uma revolução democrática, não haverá mudanças. Além disso, penso que a tributação progressiva da riqueza e da propriedade é como uma revolução permanente, exceto que é pacífica e de acordo com a lei. É de fato uma revolução permanente, é um processo.