Periférica, filha de empregada doméstica e porteiro, ela faz um cinema potente, que celebra a negritude brasileira com arrojo estético e sem abrir mão de referências cosmopolitas
Por Lia Hama, na TPM
Numa tarde de sábado no Méier, zona norte do Rio, Yasmin Thayná renasceu ao som de Nina Simone. Aos 18 anos, a garota que desde os 6 alisava o cabelo para fugir do bullying dos colegas decidiu parar com a química em seus fios. Yasmin pediu para uma amiga fazer um novo corte, assumindo as madeixas crespas. “Até hoje me emociono quando ouço Nina Simone porque foi a música que minha amiga colocou no momento da minha transição capilar. Naquele dia, pela primeira vez consegui me olhar no espelho e me sentir segura”, conta a cineasta e estudante de comunicação social da PUC-Rio, hoje com 23 anos.
A cena é reproduzida no curta-metragem Kbela, dirigido por Yasmin e lançado em setembro do ano passado no Cine Odeon, centro do Rio. O filme, sobre mulheres negras que decidem se libertar dos padrões de beleza caucasianos, causou burburinho na cena cultural carioca. Kbela chamou a atenção tanto pela potência de suas imagens como pela forma como foi produzido: com financiamento coletivo de apenas R$ 5 mil e atrizes convocadas pela internet. “Yasmin desperta um sentimento empolgante e raro no audiovisual brasileiro. Ela fala de raça de um jeito totalmente experimental, esteticamente arrojado e cosmopolita. É cinema, mas é também manifesto, documentário e obra de arte”, descreve Ronaldo Lemos, colunista da Trip e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio).
Por causa do filme, Yasmin deu entrevistas para a imprensa local e estrangeira, participou do programa Esquenta, da TV Globo, foi convidada para escrever em O Globo, na coluna do escritor José Eduardo Agualusa, e teve seu filme exibido em Nova York e em Cabo Verde. O pai, Osmar, fica todo orgulhoso. “Às vezes estamos na portaria do prédio onde ele trabalha e ele diz aos moradores: ‘Esta aqui é minha filha. Ela faz filmes’”, conta. Na adolescência, Yasmin tinha uma meta: virar engenheira para dar uma vida melhor aos pais. Foi um desvio na trajetória que a levou à Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, projeto social que tem dez anos.
No mês passado a cineasta lançou seu novo curta, Batalhas, sobre a chegada do funk ao Teatro Municipal do Rio. Trata-se da primeira produção original da Afrolix, plataforma on-line que ela criou para divulgar filmes produzidos, dirigidos ou protagonizados por negros. A sessão de estreia teve debate com o rapper Mano Brown e o ex-jogador de futebol francês Lilian Thuram. E, aguarde, Yasmin está só começando.
Batalhas mostra a apresentação de um espetáculo de passinho pela primeira vez no Teatro Municipal. Qual a importância desse acontecimento?
Foi um marco não só para os jovens que se apresentaram lá, mas para a coletividade deles, o funk. O dia da estreia quebrou vários paradigmas: muitos dos artistas que dançaram naquele palco nunca tinham entrado no Municipal. E a primeira vez que eles entram é para mostrar uma dança que eles inventaram. Muitos na plateia, pais e amigos, nunca tinham ido lá. Outros valores entraram no teatro naquele dia. Foi liberado o uso de bermuda e chinelo, o que normalmente não é permitido.
Você vem da Baixada Fluminense. Como era o ambiente em que você cresceu?
Vim de uma periferia que era semirrural, no interior do interior de Nova Iguaçu (que já é o interior do interior do Rio de Janeiro). Meu pai é porteiro e pedreiro. Minha mãe é empregada doméstica. Tive uma formação muito livre, de experimentação. Meu pai me ensinou a ter contato com a terra, adubar as plantas, construir meus brinquedos. Era uma vida simples, na base do afeto. E eu tinha o sonho de dar uma vida melhor pra eles. Então fiz curso técnico de eletrotécnica, que seria o caminho mais adequado para eu chegar até a engenharia e mudar de vida. Mas, no meio do caminho, um professor de português me fez tomar outro rumo.
Quando decidiu fazer cinema?
Eu era muito fã da série Cidade dos homens, mas passava tarde da noite na Globo. Meu pai ficava acordado gravando para eu assistir no dia seguinte. Era mágico rodar o VHS e ver aquela história, que tinha muito a ver com a minha. O próprio processo de me entender enquanto negra começa ali porque eu me identificava com tudo: a possibilidade da gravidez na adolescência e de ser mãe solteira, trabalhar numa loja do McDonald’s, a ligação afetiva com o bairro, mas, ao mesmo tempo, a necessidade de sair de lá. Aí fui estudar roteiro na Escola Livre de Cinema, um projeto muito importante em Nova Iguaçu. Você consegue imaginar a ousadia que é ter uma escola de cinema num local totalmente estigmatizado pela violência? Foi ali que eu soube que poderia ser cineasta e que, pelo cinema, romperia com a ideia de pobreza.
Você frequenta espaços da elite, como a PUC-Rio. A afirmação da sua negritude faz você ter mais voz?
Na PUC, a maioria dos meus trabalhos pauta a questão racial. Minha presença nesses espaços é uma questão política. Não é algo que conquistei sozinha, é parte do projeto pelo qual o movimento negro brigou por décadas para que fosse possível. Então, sim, tem uma força ancestral que levo comigo, e isso faz com que tenhamos mais voz e mais espaço. Mas não é fácil. Me incomodo quando ser negro é visto como uma “facilidade”. Não é somente ser “negra” que me faz estar nesses espaços. Tenho que passar por provas, por avaliações rígidas, por pressão e expectativa gigantes.
Como foi o processo de produção do seu outro curta, Kbela
Escrevi um conto chamado “MC Kbela”, que entrou numa coletânea da Flupp (Festa Literária das Periferias). Com meus amigos tive a ideia de fazer um vídeo a partir dele. Fizemos uma chamada pública na internet convocando atrizes e não atrizes, negras, que quisessem participar. Em dois dias, foram mais de 200 inscrições de todo o Brasil. Vimos que era necessário fazer algo maior e veio a ideia do filme. Depois que filmamos pela primeira vez, fui assaltada e perdi todo o material. Na hora foi tenso, mas no final foi ótimo porque tive tempo de digerir a ideia e desdobrar em algo mais potente. Fui pesquisar, ver coisas, trazer referências. A primeira versão do Kbela não era nem 10% do que é hoje.
Quais são as referências estéticas do filme?
A referência máxima é o cineasta e ativista do movimento negro Zózimo Bulbul [1937-2013] e a linguagem que ele usou no filme Alma no olho, de 1974. Também teve influência de videoclipes da cantora de soul Laura Mvula, textos da ativista americana Bell Hooks, músicas da Nina Simone e do John Coltrane e a performance Bombril, da artista mineira Priscila Rezende.
Como o cinema pode ajudar a combater o racismo no Brasil?
Acho que a gente precisa criar um outro imaginário sobre o negro e os produtos audiovisuais (novela, cinema, séries etc.) têm papel fundamental nisso. A televisão e o cinema produzidos no país não representam uma parcela significativa da população. Pluralizar quem faz é pluralizar o que se faz, entende? E a gente tem um modelo engessado de distribuição, que são as vias comerciais, TV e grandes redes de cinema, ou a lógica dos festivais, que, na maioria das vezes, privilegia linguagens eurocêntricas. Desse desejo de tentar produzir soluções nasceu a AfroFlix, que reúne qualquer título escrito, dirigido ou produzido por pelo menos uma pessoa negra. O objetivo é gerar visibilidade para essas produções.
Já tem um próximo projeto?
Sim, estou escrevendo o roteiro do meu primeiro longa, sobre amor.
Seus pais gostam dos seus filmes?
Estou me reaproximando da minha mãe agora, fui criada pela minha avó e pelo meu pai. Ele fica todo bobo. Às vezes estamos na portaria do prédio onde ele trabalha e ele diz aos moradores: “Essa aqui é minha filha. Ela faz filmes”. Sabe aquele poema do Paulo Leminski: “Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”? Foi meu pai quem me ensinou isso.